quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Pássaros




Há pássaros que nascem livres. De plumagem simples, mas com um canto que se compara com os mais suaves bálsamos. É deles o mundo. O céu se faz infinito quando abrem as asas e alçam voo, deixando que o destino seja ao sabor do vento.
“Eu não estou aqui e isto não está acontecendo. Eu não estou aqui e isto não está acontecendo. Eu não estou aqui e isto não está acontecendo...”- repetia a garota até que a mente acreditasse ou que a mulher em sua frente fosse embora.
O quarto era banhado com capricho pelos raios matinais do sol de verão, que sinceramente, fazia o corpo da mulher ser mais edível aos olhos. A pele salpicada de pequenas pintas claras, os cabelos curtos e negros, as formas esculpidas por um artista aficionado pela proporção áurea.  O pequeno cômodo quase não suportava a tensão daquele momento, quando ela se despiu.   

“Posso, ao menos, saber seu nome?”- a frase foi cuspida em uma calma histericamente disfarçada.

“Não Amanda, minha querida, não saberá meu nome e talvez nem se lembre de que eu estive aqui. Você...quer... que... as... vozes ...cessem, não quer?”- A medida que o som foi se esvaindo pela garganta da mulher, a voz parecia mais inumana. Antes que a garota tivesse tempo para ter medo, a mulher lhe tomou pela face e lhe sorveu o ar em um violento beijo.

                               




         Dor de cabeça novamente, o quarto à deriva, tentarei chegar ao banheiro em passos curtos.  Meu corpo não obedece. Que horas são¿ Ainda tem luz lá fora. Mas isso não me ajuda muito, não sei se significa se dormi algumas horas ou acordei na tarde do dia seguinte, ou do seguinte, ou do seguinte. 
         Passos no corredor, uma voz familiar afunilada. Meu pai.

“Pai, pai..”- não escuto minha voz.


“Pai, está me ouvindo...”- desespero começa a formigar minhas mãos

“Ele está se aproximando da porta,  penso  em agonia, GRITE!”

“PAAAAAAAAAI!, AJUDAAAA!” – Nada, o que houve comigo¿ Que monstruosidade aquela mulher fez comigo? O que EU fiz comigo?

“Ele está voltando ao corredor, espera, porque ele voltou com enfermeiros?”

“Não... isso ...dói”-tento falar para eles quando amarram a borracha firme no meu braço.

Espetam uma agulha fria e minhas veias ardem. Choro, mas ninguém pode me ouvir.

               





Um corvo pousa na branca janela hospitalar. Uma menina o admira com os olhos úmidos tornam o verde mais vivo da íris, como se fosse uma terra que almejava ser visitada pela chuva novamente. Lágrimas se acumulam nos olhos, se equilibram, mas não rolam pelo rosto. O dia está nublado lá fora. Ela sorri e passa a mão no curto cabelo loiro.  Olha em volta para as outras meninas do quarto, todas adormecidas. A porta se abre sem som, só com uma leve corrente de ar. Uma enfermeira  quarentona de quadris largos, cabelos negros e curtos, traz uma bandeja com dois copos de plástico até a cama da garota. Um com um punhado de remédios de todas as formas e cores e outro com água.


“Amanda.. acordou bem hoje, querida?”-diz com uma voz suave e treinada para ser assim.

“Hoje eu vou ser uma andorinha novamente¿ Quero ir para o sul... Andorinhas migram para o Sul no verão... talvez até veja meu pai.”  


“Pode sim, é só tomar seu remédio, querida...”

“Mas se eu tomar, não vou poder sair daqui hoje. As vezes quando eu durmo, ela vem me visitar e eu vejo a cidade de cima, o vento é frio perto das nuvens, mas eu gosto. Não... quero tomar isso, hoje... – Amanda coloca as mãos na boca e  balança negativamente a cabeça.
                

“Quem vem te visitar, Amanda, uma amiga? - Indaga a enfermeira assustada com a segurança do hospital
                

“Ela" - aponta a garota ligeiramente para a janela, para voltar a tapar a boca.
                

“Ah... sua amiga 'corvo'.- Fala a mulher aliviada, as vezes se esquece de quais são as suas pacientes.- “Hoje você não vai poder ser uma andorinha, Amanda. Não, não chore... shhhh, shhh, calma. Toma aqui, toma.”- Ela a envolve em um abraço e a garota deixa que as pílulas sejam empurras garganta a baixo.

“Posssssso... saber seu nome?- fala Amanda com a língua dormente.
               

“Não Amanda, minha querida, não saberá meu nome e talvez nem se lembre de que eu estive aqui. Você...quer... que... as... vozes ...cessem, não quer?”.





quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Recomeço?


     Nunca consegui conviver bem com velhas perdas. Elas geralmente tem aquele tipo de assunto saudosista de "no meu tempo...".Passam horas conversando contigo com os olhos vagos em alguma lembrança. Relembram o tempo que foram o futuro de alguém, que viviam felizes em seus sonhos.
  Velhas perdas viveram demais em um mundo que já não se encaixam. Sentem saudade de coias simples que você já não pode lhes dar. Um abraço de quem vocês amaram, a expectativa de um sorriso, ouvir seu coração fora do ritmo. Então elas te olham fundo nos olhos e você sente-se culpada por coias que fez, deixou de fazer, pensou em fazer. Por isso não consigo lidar tão bem com elas.

   Quando essas perdas estão no começo da existência, você dá mais atenção a elas, seca seus prantos, passa noites acordadas vigiando-as. É uma companhia que te consola quando está se sentindo realmente sozinha. Mas isso não é para sempre. Elas envelhecem e você segue sua vida.
   Tem dias que você acorda e se lembra de alguma, ou quando está preparando um café. Se lembra de como foi dolorosa a fase em que a vida lhes apresentou. Suspira fundo, vai ouvir uma música e pensa realmente se pode supera-la.
   A maioria você deixa que enterrem em uma cova qualquer e sente raiva de você, mas a vida só pode ser vivida assim. Mas tem aquelas Velhas perdas que nunca se vão, porque deixar que desliguem seus aparelhos significa deixar morrer uma parte sua que sentiu, que amou, que viveu. É deixar-se esquecer algo que realmente te marcou.
  No fim, quando seu último suspiro chegar, talvez uma Velha dor te venha fazer companhia e segurar sua mão. E talvez só ela. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Magoatecária

Madrugada
Mal Grudada
Na pálpebra
Amanhece cheia de água
Vira rima inconstante
Olhos pesados
Passado um instante
Lembrança errante
Guardada na estante
De quem cataloga mágoa

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Eternidade de um coração roubado




     A menina corre desesperada pela mata virgem. Os galhos são insensíveis chicotes na face negra da garota, o sangue escorre em grossos filetes onde a vegetação corta, como que querendo expulsar a visitante indesejável. Ela puxa o ar noturno com os pulmões exaustos enquanto as pernas vagueiam e tropeçam pelo breu de arvores densas. Ela cai, as mãos impedem que o seu rosto chegue ao chão enlameado pelas chuvas insistentes daquela semana, mas não impedem que tingam de barro a bermuda jeans e a blusa azul básica. Ela se levanta em um pulo, as palmas da mão estão ardendo, a pele escura brilha de suor sangue e lágrimas. Toma o ar, o mais profundo que pode, e recomeça a correr, porque o inferno vem em seu encalço.

     Ela chega ao asfalto e não sabe mais onde está. A rua deserta com postes sem luz, faz suas entranhas se contorcerem em ângulos dolorosos. Aquele frio na espinha irracional se apodera do corpo molenga. Ela desaba de joelhos. O fim logo vem e ela reza, trêmula.
    Grandes olhos cor de âmbar vão surgindo na escuridão verde.

"Estou aqui. Evocou-me. Fizeste seus desejos por meio de meus termos... agora vim revindica-los" - O ar todo se esfria com a voz não-humana da criatura. O som grave faz tudo se silenciar. As árvores não ousam se mexer e o coração dela desejaria estar imóvel também.

"Mas valeu o preço?"-Mãos longas e finas, como um graveto seco tocam o ombro nu da garota que empalidece instantaneamente. O toque lhe congela os movimentos, ela nada fala, nada faz. O coração acelera, machucando o peito. E a criatura prossegue.

"Vieste até meu bosque, proferiste as palavras, finalizou o contrato com teu primeiro sangue. Como parte dele, também preciso lhe perguntar se entregará de bom grado..."


    Antes de poder finalizar, a coisa se coloca a frente da garota. Ela agora pode ver seu perseguidor. A pele branca e manchada como um tronco de árvore velha, os cabelos cinzentos e longos, magro e de características quase humanas, se não fosse pelos olhos âmbar opacos;imóveis e pela falta de nariz e boca. Os olhos se acendem e aquilo termina a frase:

"... entregará de bom grado seu coração?"- sua frio, faz-se um nó na garganta, os olhos giram na órbita e ela devaneia.

   A cena se faz viva, como o despertar de um longo sono. A luz da fresta da porta de madeira, deixa o quarto semi iluminado pelos raios de sol invernal. Dois pares de olhos trocam as confidências daquele momento. A cama tem cheiro dos dois. Ela se entrelaça no corpo do garoto, que lhe dá beijos curtos no pescoço e ombros enquanto ela se aproxima. Risos baixos. Clima frio. Ela descansa a cabeça e todos os medos no peito dele. Duas pessoas no limar de ser estranho para o outro, sem as frustrações corriqueiras, só as descobertas que fazem as borboletas inválidas do estômago terem saudade de alçar voo. Um par de mãos se entrelaçam:

"Gostaria de poder te dar um presente - diz com voz tímida a garota"
"E porque não pode?- indaga o menino com a testa franzida
"O que eu quero te dar já não é meu..."-ele continua com a mesma expressão e ela prossegue.

"Gostaria de te dar meu coração, mas já o tem."

   Ela se afunda em seus braços, e a cena vai se apagando, como a última chama de uma vela antes se consumir.


  Os olhos âmbar continuam a encarando, mas agora eles parecem úmidos. A pele do rosto de tal criatura tem longos caminhos de condensação. Se não fosse o sereno da madrugada, que molhava também a grama da beira da estrada, ela poderia supor que tal coisa tinha chorado. O corpo não tremia mais de medo e nem de frio. Ela respira profundamente e deixa aquela pequena nuvem de vapor, esvair lentamente de sua boca carmim. Prossegue com a voz monótona:

"Sim, repito agora as palavras do meu juramento:

 Pelos deuses antigos que um dia pisaram nesse chão.
 Que o amor seja recíproco.
 Ou entrego a vós meu coração." 


  Ela se ergue e a criatura se aproxima com os dedos longos do peito da menina. Crava-os na carne, o sangue esguicha tingindo a pálida aberração. Ela não exprime som algum, enquanto tem seu peito dilacerado. O único som presente é o estalar dos seus ossos, quando tem a caixa torácica partida. Um som seco e curto, um estalido e acabou. As falanges pálidas parecem pincéis encharcados de tinta fresca quando saem de dentro do corpo inerte e ainda de pé da garota. Ele tem o coração pulsante fechado nas mãos secas, como uma gaiola de vime.

"Tudo que vocês Humanos dizem ser eterno, morre prematuramente. Só a morte é infindável."- diz tal coisa, olhando para os olhos frios e sem vida da menina antes de se retirar e desaparecer no bosque, como se nunca tivesse existido.

    O corpo da garota começa a se transmutar lentamente, iluminado pela rósea aurora que surge longe no horizonte infinito. A pele escura se torna amadeirada e cheia de vincos. Os braços se erguem pateticamente, como se ela fosse uma marionete. Os dedos se alongam e florescem. Galhos e mais galhos vão crescendo em uma velocidade acelerada. O corpo se expande, se tornando um tronco roliço e raízes fazem remexer a terra.

   Perante o vento cortante da madrugada,sibilando em um únco tom, a árvore nova e as demais,parecem lamentar dolorosamente.









sexta-feira, 29 de novembro de 2013

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Despedaça


Isso que faz, me corrói feito traça.
Então coma meus versos, deguste cada dor.
Engasgue-se nesse amargo torpor
Enquanto me   des  pe  da  ça.


Quando acontece, minha vontade se rechaça.
Não tem como se opor
Só queria que fosse indolor
Enquanto me   des  pe  da  ça.


Meu corpo transparente, frágil vidraça.
Sublima pelo calor
Ciente que do fato é o mentor.
Sou eu que te abraça, enquanto me des  pe  da  ça.





terça-feira, 19 de novembro de 2013

Vespas: Histeria

II
Histeria


    O consultório era um lugar estéril para o homem. Mesmo sentado no sofá almofadado, mesmo o lugar sendo condescendente a sua classe, ele se sentia desconfortável. Os pés inquietos, olhos fixos no chão, dedos tamborilando no colo. Ele estava impaciente para se retirar dali, com ou sem sua mulher. Mas o que mais o irritava era o sorriso da recepcionista, dava para ouvir o "Eu sei o que vai ocorrer daqui a pouco. Que vergonha para um homem como o senhor sua mulher ser assim." por detrás daqueles lábios esticados. 
   A porta se abre e um médico calvo e de barbas brancas, cumprimenta e o convida a entrar. Que alívio.
 
   "Há quanto tempo"!- diz o médico indicando a cadeira defronte a sua mesa para o outro- "Triste saber o que houve com a Dália, George. Mas veio à pessoa certa, aqui ela receberá o tratamento certo e o sigilo necessário.
 
-Obrigado Dr.Leifert. Como vai a Constance e as meninas?- Ele diz isso com um sorriso envergonhado para o médico. Um amigo de longa data seria mesmo a melhor opção?
 
-Ah, a Constance anda meio constipada, culpa do climatério feminino e esses fogachos. As gêmeas vão bem, precisa ver como a Brenda e Bianca estão coradas e viçosas! Elas completam 15 em maio. Vou fazer a festa na fazenda que destes a mim e a Constance de presente de Casamento.- O sorriso do homem é quase todo escondido pela barba alva.

-Preciso falar com Dália, talvez ela queira passar uma temporada na Europa novamente. Sabe como ela detesta esse clima quente de Novembro- George dá um sorriso amarelo e o Doutor percebe que a conversa se estendeu demais.

-Bem... podemos iniciar a entrevista então?- George faz um aceno positivo com a cabeça e o Médico liga o enorme gravador que ocupava quase a mesa toda. Então ele prossegue com uma voz profunda:

" 17 de novembro de 1921. Caso de Histeria de D.B. Entrevista com o Marido.-Faz uma curta pausa e continua.

-Senhor B. Quando percebeu que sua mulher apresentava os sintomas?
-Depois de consumado o casamento, ela não engravidou depois de 2 anos...
-Eram regulares os coitos? Via alguma diferença nela nessa hora?
-Eram... mensais, quando estava em seu período fértil. Não, ela agia como toda mulher de família age- responde George nervoso pela interrupção.
-Entendo. Prossiga.
-Fomos a um especialista em fertilidade e vimos que ela não poderia engravidar. Então na mesma semana ela começou a apresentar crises de sonambulismo e tiques. Piscava os olhos demasiadamente e suas sobrancelhas se contorciam.
-E há quanto tempo foi a consulta?
-Foram a mais ou menos quatro meses. Fomos em Agosto.
-Além de sonambulismo e contrações involuntárias, percebeu mais algum sintoma?
-Não, mais nenhum.
-Tudo bem. Pode me contar mais sobre vocês?
-Bem, ela era filha de um antigo professor meu da faculdade. Em um de nossos longos passeios pelo campus,me dissera que tinha uma filha fora da idade casadora. Muito educada, bem instruída, mas meia feiota, me confidenciou com pena. Ele disse que o faria muito feliz se nos cassássemos. Eu prometi que o faria. Nos casamos quando ele adoeceu.
-Quantos anos tinham?
-Ela tinha 28  e eu 36.
-Casados a quanto tempo?
-5 anos em janeiro.
-Hmmm.. me falou que o pai dela tinha adoecido. Ele ainda vive?
-Não, morreu quando estávamos em lua de mel.
-Entendo. Isso pode ter influenciado.
-Nutre, qual tipo de sentimento por sua mulher? Afeto, desejo, raiva?
-Tenho respeito por ela e ela a mim. Isso é o que importa em um casamento sólido. O amor acaba durante os anos, respeito nunca, mesmo se o marido precisa impo-lo.
-Entendo.
-Tem alguma amante?
-Isso é um absurdo! Acho que está além de suas pesquisas essa sua pergunta, me recuso a responder.- O Doutor Leifert, pede para George ter calma com as mãos.

Caso de histeria de D.B. Entrevista com o marido concluída. Agora vamos analisar o caso de conversão por meio dos estudos das zonas histerógenas da paciente."- Mais uma curta pausa e com um "tick" desliga o gravador.

-Obrigado George, suas respostas foram bem elucidativas para o caso. Pode ir até a minha secretária para marcar as próximas consultas da Dália.

   O homem sai da sala meio tonto. "estudos das zonas histerógenas da paciente..." O sangue dele ferveu com essas palavras. Velho decrépito. Asqueroso. "Minha Dália é a mulher mais decente que eu já conheci, nem ruborizava ao cumprir os seus deveres de esposa. Oh, minha querida, me perdoe por isso."
  Chega até o balcão a passos tortos, murmura que quer marcar as próximas consultas e ele está lá novamente, aquele sorriso de deboche da secretária.
-Quantas consultas deseja marcar, Senhor Blackwood?
Ele se prepara para dar um forte tapa na cara sem cor da mulher, quase encolhida na cadeira. Mas outro som invade o consultório. E os ouvidos de George.

"uhhhhhhhhhhhm... uhhhhhhhhm... ahhhhh... ahhhh... AAAAAAAAAAAAAHHHHH!"

   O som perfura seu corpo como uma lamina fria. O medo corrompe todos os seus sentidos. Ele treme. Não sabe mas treme. Desce as escadas correndo até o carro, o som ainda está na sua cabeça e talvez fique para sempre. Um som do pecado e doença, uma eterna lembrança do inferno. Ele senta no banco e percebe que está entumecido. Memórias antigas são desenterradas, junto com uma torrente de lágrimas que ele é obrigado a engolir. Beijos doces de uma boca agora desconhecida, cheiro de pele quente. Se cheiro, sua boca...

"Velho Asqueroso"-Fala com cólera antes de dar a partida e arrancar com o carro. 

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(Continua)


  


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Vespas: Duas Vidas, um sonho.

I

Duas Vidas, um sonho.


     Não me lembro da última vez que saí do quarto escuro. Eles me deixavam amarrada, me injetavam uma coisa que me deixava esquisita. Parecia que tinha outra mulher na minha cabeça, dentro dela. Eu sonhava no quarto escuro. Tinha um sonho onde eu corria em um longo campo de relva macia. Eu me lembro de sorrir o tempo todo nele, eu acho que era verão porque o vento era um doce alívio a minha pele. Meus cabelos dançavam soltos, as copas das árvores se juntavam a valsa. Então uma mulher magra e feia, com a cara retorcida em um sorriso, eu me lembro de sentir medo nessa hora, me puxava pelo braço, ela me puxava com tanta força que não conseguia fechar minha mão. Me levava até um lago. Mas era um lago fedorento, de uma água turva, sem margem nem peixes. Então ela me levantava pelo pescoço ( a cara dela parecia tão triste nessa hora) e segurava minha cabeça dentro da água. Eu me debatia e sentia nojo por estar engolindo aquela coisa pastosa entrando na minha garganta. Eu tentava levantar a cabeça, fazia toda a força que podia, minhas mãos não alcançavam nada e ficavam entrando e saindo do lago. Podia ouvir o som abafado delas do meu lado, incapazes. Bolhas gigantes saiam da minha boca e meus pulmões queriam tanto respirar que doíam. As bolhas ficaram menores até cessarem. Nesse ponto eu acordava na escuridão, suada. Sabia onde estava e logo eles voltariam.
    Sabia que tinha gritado enquanto dormia, sempre faço isso. Eles me espetam com agulhas longas, me deixam sem comer. Isso faz minha cabeça latejar e eu ter tanta tontura, mas o que mais me assusta que é Ela sempre vem antes deles me levarem para fora, como hoje.
    No começo me deixavam andar pelos corredores do prédio, ele é todo azulejado branco, com cheiro de pinheiro. Mas uma vez um homem me agarrou e queria me beijar, ele disse que eu tinha feito coisas muito ruins e que agora eu receberia minha punição. Eu mordi o pescoço dele e esguichou sangue. Vieram mais homens e me seguraram. Um outro de terno estava gritando e disse que o Sr.Blackwood não poderia saber disso. Eu tentei me lembrar quem era o Sr.Blackwood, mas então senti uma picada e dormi.

   Agora eu estou em um quarto pequeno, gosto dele, o sol fica mais tempo na janela. Só não gosto de quando o deixam escuro. Não gosto do quarto escuro. Ele fica cheio de vozes nos sonhos, e eu vejo pessoas que eu não me lembro. Sou adulta quando o quarto não tem luz e sempre fico muito doente. Eu sinto frio, tanto frio, mas meu corpo ferve. Eu tremo muito também. E quando eu posso voltar a ver o sol, enchendo o quarto todo, eu me sento contra a parede, ela fica morna e aconchegante. Aí, eu durmo e sou criança novamente.
   Eles estão vindo! Posso ouvir os passos...!

...Desapressados eles vem pelos corredores azulejados,se eu gritar, me picam e me amarram... 

...Desapressados eles vem pelos corredores azulejados,se eu gritar, me picam e me amarram...
...Desapressados eles vem pelos corredores azulejados, se eu gritar, me picam e me amarram...
...Desapressados eles vem pelos corredores azulejados,se eu gritar, me picam e me amarram......Desapressados eles vem pelos corredores azulejados,se eu correr, me picam e me amarram...
...Desapressados eles vem pelos corredores azulejados,se eu gritar, me picam e me amarram...
...Desapressados eles vem pelos corredores azulejados,se eu gritar, me picam e me amarram...
...Desapressados eles vem pelos corredores azulejados,se eu gritar, me picam e me amarram......

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(Continua)




segunda-feira, 11 de novembro de 2013


Quando seus espelhos do orgulho se erguem
A sua tristeza é só espelhada.
Como espera que os outros te enxerguem,
Se não é a imagem da tristeza velada?
Me diga como consegue maquiar um sorriso,
Se seus olhos estão embaçados ?
E nesse espelho não se vê, mas enxergar-se o nada,
O reflexo é conciso
E a tristeza ainda está lá, inteira, quando enxergada
Você que vira cacos, espalhados

                                              
                                           al
                                                   
                                                  
                                                       que 
                               


                                         bra
                                                                  do








quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O Vazio tem seu nome, Mariana.

Esse conto foi idealizado com a ajuda de Hibernal Dream, um futuro Ghost Writer. Ele me deu um tempo da sua madrugada para trocarmos nossos textos e de um dele surgiu essa ideia. Nosso conto, com orgulho. Aproveitem.




      O desespero vem rápido como um tiro. A morte sobe os degraus, fazendo a escada ranger dolorosamente. A madrugada mal começou e eu estou quase no fim do maço de cigarros. Dou uma longa tragada e posso sentir o alcatrão fazendo seu caminho até meus pulmões cansados. O gosto queima na garganta e permanece forte na língua. Expiro o veneno, carbono e lembranças. As lembranças são as notas mais fortes dessa essência de desaconchego.  A fumaça dança em espirais na penumbra, iluminada pela fresta da janela formando vários retângulos de luz no piso da cozinha.
Incrível  como posso me recordar dela na primeira manhã, depois da primeira noite. Descabelada e rouca, andando na ponta dos diminutos pezinhos até a cozinha. Linda. É como se a casa tivesse memória celular e se lembrasse de cada toque nas paredes, de cada roupa jogada pelo chão, cada vez que ela suspirou dentro dos cômodos, cada lágrima pelos cantos e guardasse como o último rosto a ser lembrado antes da demolição. Infelizmente só a casa lembra, porque não consigo lembrar do rosto dela. Posso ver claramente o sorriso, o olhar de soslaio, mas se tento concentrar no rosto completo, por mais que eu me esforce, a mente falha. Eu daria meu passado inteiro, pela só pela lembrança do rosto dela naquela manhã primeva. Desde o momento que as pupilas se contraíram por causa da luz, até o sorriso que ela me deu, músculo por músculo daquela face corada pelo sono por mim acompanhado. Esse seria o momento que eu gostaria de ver antes de morrer. Porque esse foi o limiar dos meus sonhos mais belos e a ruína da minha seca alma. Quando eu me lembro do rosto de Mariana, é tudo breu infindável, é quando eu estou sozinho em meus pensamentos.
Termino o maço, lembrando que dizia que o cabelo dela tinha cheiro de orvalho. Que idiotice! As bactérias que evaporam do chão tem esse cheiro, não a água. Mas mesmo assim eu me sentia Drummond falando isso aos sussurros para a minha musa. Depois quando ela pediu “um tempo”, eu vivia repetindo e vivia para repetir o “Não se mate. Carlos,sossegue,o amor é isso que você está vendo:hoje beija, amanhã não beija,”, sendo eu um outro Carlos ferido, esse poema virou oração. De tempo em tempo, veio à separação e um novo amor. Para Mariana.
     Arrasto-me até o amontoado de cobertas onde ficava nossa cama. Eu queimei-a no último acesso de frustração. “Ela me esqueceu”-repetia bêbado- enquanto o metal retorcia e estalava. No fim, sobrou só o refugo de um homem, de uma cama e de um amor que não vingou. O sono vem logo, junto com os mesmos pensamentos que me visitam há meses.  Na primeira vez que encostei a pistola na língua, tive a impressão de que o ferro tinha gosto de sangue. Isso me fez suar frio e abandonar a arma na terceira gaveta do criado mudo. A ideia também foi trancada em algum cofre da mente, junto com os devaneios de aparecer pelado na escola e meu primeiro sonho molhado. É vergonhoso lembrar-se disso, você se sente vulnerável demais e tenta nunca mais se sentir assim. Mas as vezes esses cofres são arrombados pela confiança em outros. Um anônimo que tenha os seus sonhos, um amigo que tenha seu corpo, um amor que tenha sua vontade, seus sonhos e seu corpo. Mariana...
     A noite se desfaz como veio: Estúpida e fria. Me sinto um mendigo, sujo e bêbado, enrolado em uns trapos que foram cobertas um dia. Acho que talvez eu seja, um mendigo esquizofrênico que se imagina em um apartamento velho e quase sem mobília, chutado por uma mulher. Droga, seu eu realmente fosse estaria sibilando isso com o cabideiro e não em um solilóquio. A boca seca, os olhos tortos... ressaca. Talvez seja a hora de uma carta. Me levanto com o quarto rodopiando, vou até meu casaco roto e dentro dele pego uma lápis pela metade, roído e uma caderneta. Me escoro e sinto a parede deslizar pelas costas até chegar no frio chão. Olho para a janela com cortinas improvisadas de lençol. O sol já vem, Carlos. Perco uns minutos olhando para a esparsa luz que invade a fresta e o ar sujo do quarto. A pele dela ficava tão linda tocada pela luz de um dia que deixou de existir. As cores tinham tons de sonho, desfocadas e caleidoscópicas. Minha mão treme um pouco, tirando-me do devaneio. O papel está pronto.

" Mariana, maldita seja quando seu sorriso se perdeu em meus olhos, eu... "

    Paro de escrever, ela não merece nem essas torpes linhas. Vou partir como vivi nesse mundo: sozinho. Sei onde está a arma. O gosto de sangue não está mais no cano. É férreo sim. Do jeito que seu beijo costumava ser... Mariana... 
         O desespero vem rápido como um tiro. A morte sobe os degraus, fazendo a escada ranger dolorosamente. Mas eu lembrei de trancar a porta?

               


                

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Como se dá bom-dia para quem ainda não dormiu?

   Fique a vontade, não te culpo pelo meu sono ruim, pelo meu sonho ruim, ou a falta deles. Culpe as borboletas inválidas no meu estômago, as estrelas que morreram sem cortejo. Culpe o pianista surdo que não ouviu suas últimas palmas, o peito que se afoga em vazio.

   A madrugada vem e passa, deixando ora dormência, ora arrepio. Eu sempre achei que o orvalho eram lágrimas que a noite escondia por orgulho, talvez hoje ela chore por ti. 

   Bom dia, a quem teve sono leve e acordou alarmado e então, deixou-se afundar em algum abismo. Saiba que um sonho morreu para eu lhe dar bom dia, um seu. Talvez eu deixe de adormecer, para que os sonhos vivam e outra coisa padeça com minhas olheiras. Eternamente ouvindo boa noite e madrugando, partilhando sonhos de boêmios. Não parece tão ruim ficar sem o seu bom dia.

Dor de estômago pós boca da noite



Exaurindo-se nas dores do corpo e nas além dele.
Falta de sono é dormência.
Acreditar que não, é peso-morto.
peso-morto da não-existência.

sábado, 19 de outubro de 2013

Bilhete de jogo de cama.

Quando estamos só eu e você, eu sinto menos minha. Menos minha tristeza. Menos minha decepção. Menos minha incapacidade. Eu me sinto "impertencente" de qualquer coisa que não esteja na distância dos seus olhos nesses momentos. 

Quando estamos só você e eu, dormir em paz é eternidade. 

Tercetos para um Insone

E é assim, sem boa noite que eu me despeço. Teu silêncio é um acoite espontâneo. Teu amor é objeto, falta é sucedâneo. Sem boa noite, a noite não será. Meu silêncio é um acoite, que navalha a mente insone. Os sonhos que ninguém sonhará, a sombra da fresta que colecione.

O meu, eu deixei pra ti embrulhado em desculpa.
Todo silêncio é um açoite, que eu sinto sem ti.
Sentimento que usurpa, a noite que não dormi.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Constelação de memórias



Costas da mão estão paraplégicas.
E as cordas vocais desfiaram.
Tetos celestes desabaram

Fios de cabelo entre os dedos,tecem lembrança.
Órion nos seus olhos
E se a poeira de estrelas eu fosse alérgica?

Anos luz de distância
Brilho de galáxias que uma noite chegaram
Pedidos ao céu da boca

São feitos e perdidos.
Constelação de memórias, eis a nossa história.




terça-feira, 10 de setembro de 2013


Todos os erros se acumulam em uma cova rasa, 
escavada com a própria mão. 
Crime perfeito, mas culpa te escarra.
Todos somos cúmplices da solidão. 

Visita é sempre a falta

Uma vida é nada. Passa só.
Ossos velhos doem sem tempo.
Uma (in)decisão, em corda vira nó.

O nada vira pó. 




segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A Mulher de Cristal

    Da forma do artista, saiu a massa plástica viscosa. Disforme pelo calor do forno. Ele aprecia o trabalho, enquanto o material se enrijece.
    O vidraceiro demorou uma vida toda para aperfeiçoar o molde, a quantidade perfeita de sílica,sódio, cálcio e decepção depois que a obras finais saíram com defeitos. Ele tinha os traços do rosto fundos, por se sentir  incompleto na vida e completamente infeliz. Nenhuma mulher viva o encantava, pele quente jamais fez  amar alguém, mesmo buscando isso desesperadamente. Mas no fim eram só palavras e expectativas para elas e dois corpos falhos para ele . Ele não tinha laços com os vizinhos e amigos, seu coração era mais frio e imóvel que as taças expostas na vitrine da pequena loja.
    A mulher saiu do molde, a pele fria era de vidro tão cristalino, que parecia ser de gelo puríssimo. Óxido de ferro na mistura inicial, deixaram os cabelos dela quase bronze e o cobalto, fizeram seus olhos tristes e azuis. Seu corpo sem vida , faria com qualquer mulher quisesse parar o coração e ter aquela perfeição por uns segundos . E homens passariam todos os anos restantes da vida deles, abandonado mulher e filhos, só pelo prazer da contemplação infinita. Mas o artista, ele só queria que aquela escultura de cristal pudesse retribuir o que ele sentia.  Ele se aproximou de sua obra, envolveu-a com seus braços e calor. Por um momento ele achou que era a pele dele que era fria , que era o coração dele que não batia. Que tudo vinha da mulher de cristal. Então, em sua delirante paixão, ele roubou um beijo dos lábios imóveis enquanto que a esperança lhe roubava uns minutos.
    Quando os lábios se separaram, ele olhou com os olhos turvos pelas primeiras lágrimas de sua vida. Pelo breve momento que os olhos não transbordaram e o líquido se acumulou, ele viu o corpo da mulher iluminado por uma miríade de cores, como se ela fosse um vitral gregoriano tocado pelo sol.  Mas assim que as lágrimas se tornaram torrenciais, formando gotas grossas no fim rosto,  tudo desapareceu. E uma dor excruciante fez o seu coração se contorcer dentro do peito, rasgando-lhe as entranhas.  A vontade dele era enfiar com toda fúria a mão no peito e esmagar o coração. Já que a obra ele sabia que não teria coragem de destruir.
    O vidraceiro saiu da loja como se nem fosse sua, como se ele fosse um cão vadio expulso de uma chance de se abrigar da chuva. Ele entrou no primeiro bordel que sua loucura o trouxe, se deixou levar por ela, entre pernas e suspiros,a querer se sentir vivo novamente. Ele iria se intoxicar com o veneno dos pecados, até não sobrar mais nada do homem que ele era.  Depois se mudaria da cidade, se casaria com uma prima que gostava dele desde que os dois eram crianças. Assim, mesmo não sentindo nada por ela, o amor dela, seria como antídoto para tudo que ele fez com as pessoas na miserável existência, para toda a lúxuria que ele alimentava naquela noite.  Então as garotas lhe trouxeram bebida.     Cada gole que ele sorvia, imaginava estar beijando sua musa vítrea, quando seus lábios encostavam-se ao frio copo.  Ele bebeu até o corpo se sentir dormente, até que a bebida não estivesse tão amarga quanto a sua vida de mágoas.
    O homem tomou até que sua consciência perdeu a voz. Então ele ouviu as palavras delirantes da loucura. E sua loucura tinha razão.
    Ele retornou para sua oficina entre quedas e palavrões,  os degraus desceram pelos seus pés trôpegos. Ela estava lá, quase nua, vestida apenas com os olhares que eram direcionados a ele, que nem esperou o coração acelerar para beija-la novamente.  Ter o corpo dela tão próximo e se sentir completo.  Eles chegam ao chão entre carícias de puro desejo.  A mulher olha para seu rosto com uma expressão da mais refinada dor e lágrimas de vidro rolam pelos seus olhos.  Ele não entende e tenta seca-las. Quando a palma da sua mão toca o rosto da mulher,abre um talho profundo e o sangue corre quente. Inconscientemente tenta limpar na camisa, mas a mesma está encharcada com grandes poças de sangue no tecido branco.  
    Seus olhos estão secos dessa vez e olham para o corpo abaixo. O que  era vivo para ele, agora são grossas lâminas de vidro dentro de sua carne. O corpo tomba sem forças sobre os cacos.Seus olhos são perfurados pelo impacto bruto e ele sente novamente seu corpo se tornando frio. Ele ouve um coração batendo cada vez mais distante e um sorriso se alarga no rosto dilacerado. Sua loucura veio se despedir antes do abraço da morte.

    Os lábios da mulher de cristal estavam intactos e o artista teve em seu último beijo. 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Sombras de Ontem

    Ontem tive um sonho, onde as trevas do meu peito me engoliam. Foi tão real a sensação que eu resolvi fazer um conto sobre isso. 


   Me deitei sem saber se as estrelas brilhavam nas horas mortas da noite. A cama estava aquecida de lembranças mornas. Mas eu não sentia calor algum.
  Acordei por causa do ouvido infeccionado, descobri as cobertas ainda com aquela sensação de quem recém desperta. Aquele torpor de não pertencer a lugar nenhum. Os olhos embaçados pelo sono, não perceberam de imediato.
  Primeiro veio a sensação de uma angústia esmagadora, sentia o peito mais denso do que chumbo. O coração batia com uma dificuldade dolorosa, ele ecoava no quarto e fazia meus ouvidos doerem. Eu podia sentir cada pulsação como uma punhalada dentro do meu tímpano.
  Minhas mãos correram de encontro ao lado esquerdo e se afundaram. Os olhos foram de imediato para o inexplicável. Sombras dançavam. As sombras tinham um estado próprio. Elas não eram matéria, mas ao mesmo tempo eram. Uma fumaça densa e pegajosa ao sentido da visão, embora que ao tato, ela era insensível.
  Um frio, quase zero absoluto, percorreu minha espinha. Os pelos se eriçaram. Eu era puro medo. Procurei pela presença de mais alguém no quarto. Um ser em especial. Um filho de caim. A cria mais amaldiçoada do Sabá.
  Ele se vestia de sombras, seus olhos eram negros e fundos como o abismo. Cabelo de nanquim e a voz era tão profunda, que falava com a alma de quem fosse visitado por ele. Mas não eu. 
  Chamei seu nome. O silêncio me respondeu.
  A mancha negra em meu peito, se esvaiu, vertendo trevas no quarto inteiro.
  Olhei para o peito. A mancha negra foi devorando lentamente minha carne. Mas eu nada sentia. Sentia ausência de sentir tudo, a medida que minha pele ia necrosando. Eu estava paralisada pelo fim e uma voz veio do além-das-sombras.

"É inútil qualquer resistência. Você e as sombras do seu peito são uma só, sempre foram. Deixe que elas te devorem, criança. Se entregue ao seu próprio abismo"


  Não sei porque obedeci. Mas fechei os olhos. Senti as sombras como um manto, cobrindo meu corpo. Lembro de sentir as trevas acariciando meu rosto e meu cabelo. Seu toque era uma exclusão de sentidos: nem quente, nem frio, nem forte, nem delicado. Era como ser tocada por alguém que deixou de amar. Você não podia sentir e mesmo assim sentia.
  Assim eu me tornei as sombras em meu peito. Em um ponto, meu coração deixou de bater, na verdade eu já não o sentia. Não me sentia. Não sentia.
  Angústia.


quarta-feira, 17 de julho de 2013

Quando os olhos se põem  
em um céu de palavra.
Meu reino adoece 
Sem sua voz não chegada
Meu peito se propõem 
a uma longa cavalgada.
Ao som de tambores,
prevendo a batalha.
Mas um exército sem rei, nem herói,

se entrega aos seus temores.

Não conquista nada

Além da dúvida que corrói
e de lágrimas como mortalha. 


segunda-feira, 15 de julho de 2013

Aquilianos


Gente que só passa
e não se torna lembrança
e não se torna verso.

Gente que adquiri lugar e clima próprio.
Madrugada, pensamento de monção.
Que te marca com o gosto do aço.
Um beijo, um abraço.
E um dia se vão.

Mas tem aqueles que nem ficam, nem passam.
Transpassam.
Feito flecha em tendão.  

terça-feira, 9 de julho de 2013

O Novo Lar da Felicidade



    Ela sobe os oito degraus, em uma lentidão calculada. As manhãs não seriam mais ensolaradas, depois que entrasse no prédio pintado em um marrom monótono. O enfermeiro carrega as duas malas, abre a porta dupla branca e, com um sorriso beirando o cinismo, faz sinal com a cabeça para que a senhora o acompanhasse. A recepção é de uma brancura esmaltada: do piso, passando pelos móveis e terminando na luminária do teto. Mas é o sorriso da recepcionista, que se destaca por ser incomodamente... branco. Tudo naquele tom níveo e asséptico era desconfortável para a recém-chegada.
   - Então... Senhora Felicidade, faz tempo que aguardamos o seu reingresso. - Fala a recepcionista, cuspindo uma educação mal forjada. Ela era desigualmente gorda, com o tórax inchado e a cara cheia de dobras. Os braços eram maciços, terminando em mãos pequenas. Em contraste, ela tinha as pernas curtas e cheias de pequenas crateras (muito mal disfarçadas pela meia calça), os pés eram pequenos, mas muito largos.
   - Não posso dizer que é um prazer revê-la, Destempero. - Disse sinceramente. Ela não guardava rancor de voltar aquele lugar, muito menos de quem a pôs ali.- Por favor, peça logo a Descontrole para me mostrar onde vou ficar dessa vez, a viagem foi longa.
   A recepcionista contorceu o sorriso, deixando-a mais feia. Olhou para Desilusão, o enfermeiro que acompanhou a Felicidade até então:   
   - Pode acompanhar a senhora ao seu novo quarto - Ela grifou com a voz a última parte, com os olhos em uma profusão de êxtase para Felicidade. Quarto era um sinônimo muito cruel. 
   Os dois atravessaram a porta dupla que levava ao corredor principal do prédio, branca como todas as outras, mas com tela de aço para proteger o vidro. Andaram a passos rápidos, não tinha nada de nostálgico em caminhar pelo piso liso e alvo, para nenhum dos dois. Chegaram a uma sala de convivência com com grandes poltronas de estofado verde ao redor de uma tv sem sintonia e muda. Um homem magro, vestindo roupa branca e amarrotada com os cabelos pretos e alguns tufos grisalhos, assistia deitado no tapete circular a uma programação que só passava para ele. Vez ou outra, produzia algum som que lembrava uma gargalhada e a senhora percebeu quem era. Eles passaram pelo velho e Felicidade perguntou assustada para Descontrole:
  - Ele ainda está aqui? Na primeira vez que vim aqui, ele era apenas um menino e ficava fitando horas essa televisão cheia de chuviscos. E da última vez que saí, ele já era um homem em plena idade. Não há esperança para ele?
 - Não, Felicidade... - Falou Desespero com a voz trêmula e grave, parecendo sempre que tentava segurar o choro com todas as forças do grande corpo - Ele é a Infância, digo, foi a infância de alguém. A pessoa cresceu e achou um incômodo te-lo junto. Então decidiu deixar-lo nesse Asilo. A maioria das pessoa fazem isso, mas uma pequena parcela vem visitar seus parentes que deixaram aqui e uma  menor ainda, decide levar-los de novo para morar com eles. O dele, faz 20 anos que nunca mais apareceu. E eu sinceramente acho que ele vai morrer aqui. 
  Felicidade deu uma última olhada para o homem, que permaneceu de costas o tempo todo. Ela concordou com o enfermeiro em uma parte: ele nunca voltaria para casa. Pelo jeito que está alheio a todos, Infância deve pensar que está em casa. Talvez assistindo um velho desenho animado, talvez. É melhor assim para ele, Infância perderia seu sentido de existência se um dia percebesse que estava já ficando grisalho. 
   Enquanto Felicidade e Desespero cruzavam a porta aberta da sala para um pátio interno, ela começou a falar, mas para ela do que para o homem que a acompanhava. 
   - Eu acho que vou morrer aqui também. Essa vez sinto que é a última, Desespero. Eu toda vez peço que seja. Aqui não é lugar para mim. "Asilo", sempre achei esse lugar mais como um velho sótão. Abarrotado de coisas velhas que as pessoas não querem mais. Que um dia, quando for conveniente a elas ou por vergonha te ter nos abandonado aqui, se lembram que existimos. As pessoas as vezes me deprimem, desespero. Se são capazes de fazer isso conosco, que somos parte deles, imagine com as outras pessoas. O mundo fora dessas paredes brancas é todo manchado pela sujeira humana, espero que nunca saía, Desespero.- Ela recobra o fôlego e olha para o maravilhoso jardim. Com árvores de tronco escuro e galhos compridos.- Desculpe-me, eu sempre acabo tendo esse tipo de conversa com você. 
    Eles chegam a uma porta branca com a mesma grade para proteger o vidro. O enfermeiro puxa uma chave do grande molho que tinha pendurado no cinto e enfia no trinco redondo, fazendo destravar o segredo e deixando que Felicidade veja seu novo quarto. Ele tinha uma cama de ferro, um criado mudo, um guarda-roupas pequeno e uma cortina na janela com barras, todos cansativamente brancos para os dias cansativamente exaustos que ela iria passar ali, de novo. Depois que Desespero deixou as malas nos pés da cama e saiu, Felicidade viu que estava realmente sozinha, e isso a entristeceu. O pior medo da senhora era um dia ficar sozinha por completo e ela se lembrou de Infância, imaginando que se não fosse melhor enlouquecer feliz em um outro quarto de uma vida distante. 
   Os dias se passaram tão longos e incontáveis, que ela deixou de se incomodar com o tempo. Ela passava longas horas no jardim, sentada em cadeiras e mesas brancas de ferro em estilo rococó, tomando chá com Sonhos idosos. Uns já indiferentes da sua sina, que bebericavam o chá com os lábios finos e quase incolores, enquanto relembravam a época dourada de suas vidas, de amores vividos, de beijos roubados. De veteranos de guerra que eram heróis, e sobre os heróis antes deles. Felicidade ouvia com um sorriso no rosto. Mas outros eram cheios de rancores, por nunca terem conseguido realizar suas metas, de caírem em vícios, de sonharem com a morte. Pobres sonhos, pensava ela, terminarem esquecidos aqui.
   Certa vez, ela estava conversando com uma velha-sonho que um dia foi atriz, os olhos azuis, quase cegos, se enchiam de lágrimas todas as vezes que ela contava como o seu luxuoso camarim, viva perfumado por buquês de rosas vermelhas, quando a senhora, o jardim inteiro e até os pássaros, ficaram em silêncio. Desespero e mais um enfermeiro passaram pelos internos, carregando uma maca com um pano branco escondendo um volume comprido. Eles atravessaram o corredor, até além dos últimos quartos, até um muro com uma porta preta, acompanhados por todos com os olhos. Eles abriram a porta e Felicidade pôde ver vários pequenos morros cinzas, parecendo tartarugas de pedra até o horizonte. No momento em que aquela porta de madeira crua foi aberta, um vento frio entrou no asilo e levantou suavemente o lençol, mostrando onde Felicidade conseguiu ver, uns tufos de cabelos negros e grisalhos.
   Ela viu muitos passarem pela porta negra. Ela se sentia mais triste quando era um velho sonho que cruzava aquele batente. Até os que chegaram muito depois dela já se foram, a maioria não pelas portas da recepção. Ela já tinha os cabelos brancos e a pele manchada, ficava imaginando quando seria a sua vez de sair também do asilo.
  Uma tarde de um dia que as folhas da árvore começava a nascer, ela viu uma senhorinha vestida de luto, atarracada pelo tempo, entrar no jardim. o Dr.D a acompanhava e ele que quebrou o silêncio entre as duas:
  - Ela veio te levar para casa, Felicidade. Vou esperar vocês depois na minha sala para a parte burocrática, vocês sabem como é todo o processo. Venham quando quiserem, sei que tem muito o que conversar.
  Assim que o Dr.D deixou as duas, a velhinha abraçou a Felicidade o mais forte que seus braços cansados permitiam.
  - Me desculpe, me desculpe - falava entre os soluços- me desculpe te deixar aqui tanto tempo. Sei que a vida foi dura para nós, perdemos muitos que amamos. Mas agora, no fim dessa mesma vida, vim me retratar. Volte comigo Felicidade, não quero morrer longe de você.
  - Volto sim! Volto sim! nada me deixaria mais alegre.
  E Felicidade chorou. 
    

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Palavras que se propagam num silêncio rarefeito

   Vou escrever para você quando o silêncio me fizer companhia  e as pessoas desprezarem a minha.
   Vou rabiscar pontos de ônibus e muros com frases com ou sem sentido para mais ninguém 
   Pela manhã  alguém vai se levantar  e ler uma frase curta em batom carmesim, num espelho que vi por uma janela aberta. Seria engraçado.  
   Vou deixar todas as palavras que não falei, os " eu te amo" que engoli, para você  em testamento.
   Assim elas serão o que eu não fui, depois que eu for.


   Assim o silencio não te fará companhia 

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Quando o destinatário é um amigo



Meu amigo, me diga que logo chega.

     Mas venha com bastante bagagem. Quero que traga no peito toda saudade que couber, mas venha de malas vazias. Venha com mais de dez, só para garantir. Vamos enche-las de todas as nossas memórias  amarrotadas e algum casaco puído que se esconde no fundo do guarda roupa. Quando chegasse em casa, por mais estranho que pareça, esqueceria de me falar que perdeu as bagagens com todas as nossas memórias e um casaco puído dentro.
     Em um dia de um próximo inverno, encontraria uma memória quase transparente no bolso de uma velha calça jeans e se lembra que deixou mais de 10 malas na rodoviária. Nós vamos ao achados e perdidos, atrás dos nosso casacos puídos ou até, de nossas memórias, serve o que nos aquecer com mais eficácia nesse tal inverno.
     E se alguém levasse todas as bolsas, não sei se sentiria mais falta das memórias ou do velho casaco puído.

-Insônia.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Romeu e Julieta em um único Ato


    Julieta amava Romeu e Romeu amava Julieta. Ela cresceu idealizando um amor de escritores boêmios que nunca chegou a ler por inteiro. Suspirava a cada frase entre aspas. Ele cresceu decorando nomes de autores e seus dizeres. Suspirava em resposta aos suspiros de Julieta, a cada frase entre aspas.
    Julieta achava que deveria agir como as mulheres dos romances que lia. Por isso, não foi ela quem deu o primeiro beijo.
    Os dois declaravam amor eterno em forma de juras e promessas, todas as quintas-feiras, sempre que tinha platéia. Tinham receio de que se não fizessem, outro candidato melhor ensaiado, faria. 
    Romeu tinha uma pequena anomalia nos neurônios espelhos. Eles eram superativos. Por isso não foi ele quem deu o primeiro beijo. Romeu só poderia beijar Julieta, se ela o beijasse primeiro.
    Julieta amava Romeu que tinha um caso com sua terapeuta, Romeu amava Julieta que tinha um caso com o seu terapeuta. 
    E todas as quintas-feiras, com a participação da mesma platéia, eles juravam amor eterno. 

   

quinta-feira, 6 de junho de 2013

O Homem Triste

O Homem Triste
com seus longos dedos de lança em riste
E as sombras dos sonhos,
nos olhos baços dançam
E na boca em carranca, é sepultada a esperança



O Homem Triste
com seus longos dedos de lança em riste
Os dissabores e desassossegos;
os desatinos e destemperanças
Ali florescem livres como pragas e
semeiam os campos de tu que sorriste



O Homem Triste
com seus longos dedos de lança não mais em riste
Por um pescoço de criança escorrem
e se apertam como tranças
E tu que sorriste,
esconda os motivos, e esconda-os bem


Pois eles serão o inicio de uma vingança de um Homem Triste
e fará triste mais um também.


segunda-feira, 27 de maio de 2013

Orfanato Para Sonhos perdidos

I

A Casa Dos Que Não Existiam


A casa ocupava quase o quarteirão todo. Ela crescia em um cinza sóbrio por cima dos altos muros de tijolo a vista. Quem passava pela calçada a noite, tinha grandes olhos amarelados das luzes das largas janelas. Mas ninguém caminhava por ali.
A casa em si era de um estilo clássico, quase um vitoriano abandonado. Possuía seus três angustiantes andares. Uma ala principal e duas secundárias ligadas por longos corredores. Corredores em que nas noites de lua cheia permitiam a vaga claridade do satélite passar suavemente pelas leves cortinas de seda embaladas pela brisa, deixando tudo de uma elegância de épocas mortas.
O que mais se destacava era a grama de um verde-vida naquela cena descolorida. Talvez uma família, geração após geração, tenha vivido feliz nessa casa. Mas ela não foi erguida para ninguém viver ali.
Essa casa não existia. 
Na rua "De Quando Você Fecha Os Olhos", uma casa ocupava quase o quarteirão todo: O Orfanato para sonhos perdidos. 

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(Conto idealizado por Insônia e Pequena D'Alva)

domingo, 26 de maio de 2013

Gosto Quando me acorda com voz de sonho...

Gosto de quando me acorda com voz de sonho.
Talvez seja o meu predileto, daqueles que a gente tem em cochilos nas férias ou em noites frias e acobertadas. Daqueles que a gente sempre tenta não acordar e quando acorda, pensa nele o dia todo, para sonhar de novo.
Para sonhar para sempre.



quinta-feira, 23 de maio de 2013


Minhas palavras saem cambaleantes
Em meio a suspiros roubados
Negações tépidas.
Um ato falho implorado

Se tua boca não fosse tão covarde e lépida, me tomando a razão!
Se o teu beijo não fosse o mais doce sabor
Se o meu corpo não fosse uma miríade de sensações
Quando me liberta do cárcere do torpor

Meus atos não seriam tão prazerosa contradição.
Mas as palavras saem cambaleantes. E eu não faço sentido
E “sim” deixa de ser antônimo de “não”
Sussurrado em teu ouvido. 

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Memórias Fantasmas

Quando os pesadelos já não dormiam.
E as noites eram eternas vigílias.
Quando tudo que eu era, era alquebrado.

Memórias fantasmas e monstros cotidianos
Eu sempre acordava respirando a voz de outra pessoa
Eu sempre dormia com medo do escuro


Ele veio entre meus sorrisos
E eu fiquei entre seus abraços
    

Amor platônico de um amigo imaginário

Erro meu te escrever mais essas linhas.
Mas não fique tão ressentido, 
  já errei e dediquei coisas piores 
a gente de curta memória.

As linhas, elas sim, 
gostaram de você 
e não é culpa minha se você já as esqueceu.

Saiba
que se eu não tivesse te inventado,
não teria conhecido maus poemas.

No fim,
o que mais tive de real
são algumas folhas rabiscadas
que não fazem sentido para nenhum de nos dois.