domingo, 3 de agosto de 2014

Pretensão




Risada que escondi
Arfar que não respirei

 Dor amarga que bebi
Escaparam de refluxo pelo quarto
E o corpo, já farto do não-sentir
Sente
Duplamente
Como é quente o carmesim
Vou repetir isso em mim
Vou repetir isso em mim


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Canto de um Pulsar



     Algumas madrugadas atrás, descortinei a janela sobre a minha cama. Meus olhos, quase cegos, não reconheceram muita coisa além do borralho iluminado que era a Lua e a copa das árvores,que pouco nítidas, projetavam um espectro agourento no céu noturno. Não me importei em colocar os óculos porque minha vontade, inspirada em poetas parnasianos, era ouvir estrelas e não vê-las.Os olhos castanhos-turvos fixaram-se em um ponto aleatório do céu. Cotovelo se apoiava no umbral da janela, cabeça na palma da mão e a mente se apoiava em lugar nenhum, vagando tão longe que faria inveja na Voyager. O universo era tão tangencialmente finito quanto a minha mente naquele momento. 
    Meus pensamentos orbitavam Castor e Polux quando um ruído vítreo trouxe-me de volta. Um pássaro escuro e lustroso feito piche e olhos de lusco-fusco, investia em batidas regulares contra a minha janela.
     Caí de costas no chão e a queda só não foi mais dolorosa que o medo, trespassando feito lança o estômago. A ave continuava a forçar entrada e a cada nova batida, nova também era a explicação que eu dava a mim mesma.

"Mais um pesadelo vívido, aguente que logo a hiperventilação e tua arritmia vão te despertar." -Dizia a voz da minha consciência em um tom pouco convincente, enquanto eu fechava e abria os olhos com força.

"Paralisia do sono. Vai ser uma péssima e intensa lembrança." - Gaguejava meu subconsciente o primeiro distúrbio do sono, quando o vidro da janela trincou. 

"Sombras do Abismo! Criatura das Horas Mortas!" - Berra qualquer parte primitiva da minha mente enquanto a parte racional treme em silêncio, quando a besta alada salta do buraco no vidro para o quarto escuro. 


     Na penumbra os olhos da ave cintilavam na minha direção,dois globos fosforescentes me examinavam enquanto eu arfava e minhas pernas espasmavam descontroladamente. Em pequenos saltos, ela atravessou a cama e parou com as patas secas em cima das minhas coxas trêmulas. O bico em formato de foice quase encostando no meu queixo. Tentava controlar a expiração das narinas dilatadas pelo pavor quando o pássaro abriu suas longas asas em um arco.
  Então a ave cantou. Primeiro o som foi de um chiado baixo, como um rádio captando só estática. Tive mais medo. O ruído foi ficando constante e metálico. O pássaro cantava a sinfonia de estrelas pós-colapso.
  Fiquei alguns segundos com a boca semi-aberta depois que o seu canto cessou. Inebriada. O animal saltitou ligueiro até a cama e me encarou. Feixes pálidos e frios de luz, forçavam a penumbra e o meu medo do desconhecido a deixar o cômodo. As cores do amanhecer deram uma outra ótica a ave que balançava a cabeça rapidamente entre os meus lençóis.  
   Sua plumagem era de um azul profundo, tão profundo como os mares do norte. A cauda se descoloria numa cascata de tons marinhos, até chegar a um tom níveo de branco e de beleza das Camélias. Os olhos eram pequenos brilhantes que piscavam translúcidos. A ave era tão magnífica, que Narciso deixaria seu reflexo para poder morrer olhando para ela. Era um Pássaro-Contemplador-de-Estrelas.
   Minha vontade foi de cortar a ponta das assas do pássaro, mas seria um pecado transformar tal criatura num mero bibelô. Eu recostei no travesseiro, observando o voo baixo e despreocupado que o Pássaro-Contemplador-de-Estrelas dava no quarto. Talvez ele percebeu meu olhar triste e atencioso, porque veio se aninhar no meu peito e ali ficou. Piou baixinho quando eu acariciei as penas, pedindo para que não fosse embora tão cedo. E ali ficou.
   Trovejou três dias consecutivos e por três dias consecutivos o Pássaro-Contemplador-de-Estrelas deixou que eu ouvisse com todo carinho seu Canto-de-Pulsar. Na madrugada do terceiro dia, o céu se encheu de estrelas. A ave olhava pelo buraco que tinha feito no vidro e uma brisa mansa tremeu suas penas. Então me olhou e seu canto era um lamento.

"Vai! Abre tuas asas sob o Cosmos! - Falei em um tom moroso enquanto minha mão apontava involuntariamente para a janela - A chuva e minha tristeza de monção não são mais suas gaiolas.

   Ele hesitou um segundo e meio, que pareceram uma eternidade e meia. Cantou uma última vez naquela frequência sidérea. Saiu. Observei o voo cadente se distanciando até se fundir com o infinito celeste.
      Sempre aguço meus ouvidos quando uma ave canta. Cotovia, Bem-te-Vi, Coruja. Juro que até o Rouxinol eu já ouvi. Mas o eco de um canto de um pulsar, o som do Pássaro-Contemplador-de-Estrelas, só posso ouvir quando a memória lembra do brilho de Nebulosas distantes.