quarta-feira, 17 de julho de 2013

Quando os olhos se põem  
em um céu de palavra.
Meu reino adoece 
Sem sua voz não chegada
Meu peito se propõem 
a uma longa cavalgada.
Ao som de tambores,
prevendo a batalha.
Mas um exército sem rei, nem herói,

se entrega aos seus temores.

Não conquista nada

Além da dúvida que corrói
e de lágrimas como mortalha. 


segunda-feira, 15 de julho de 2013

Aquilianos


Gente que só passa
e não se torna lembrança
e não se torna verso.

Gente que adquiri lugar e clima próprio.
Madrugada, pensamento de monção.
Que te marca com o gosto do aço.
Um beijo, um abraço.
E um dia se vão.

Mas tem aqueles que nem ficam, nem passam.
Transpassam.
Feito flecha em tendão.  

terça-feira, 9 de julho de 2013

O Novo Lar da Felicidade



    Ela sobe os oito degraus, em uma lentidão calculada. As manhãs não seriam mais ensolaradas, depois que entrasse no prédio pintado em um marrom monótono. O enfermeiro carrega as duas malas, abre a porta dupla branca e, com um sorriso beirando o cinismo, faz sinal com a cabeça para que a senhora o acompanhasse. A recepção é de uma brancura esmaltada: do piso, passando pelos móveis e terminando na luminária do teto. Mas é o sorriso da recepcionista, que se destaca por ser incomodamente... branco. Tudo naquele tom níveo e asséptico era desconfortável para a recém-chegada.
   - Então... Senhora Felicidade, faz tempo que aguardamos o seu reingresso. - Fala a recepcionista, cuspindo uma educação mal forjada. Ela era desigualmente gorda, com o tórax inchado e a cara cheia de dobras. Os braços eram maciços, terminando em mãos pequenas. Em contraste, ela tinha as pernas curtas e cheias de pequenas crateras (muito mal disfarçadas pela meia calça), os pés eram pequenos, mas muito largos.
   - Não posso dizer que é um prazer revê-la, Destempero. - Disse sinceramente. Ela não guardava rancor de voltar aquele lugar, muito menos de quem a pôs ali.- Por favor, peça logo a Descontrole para me mostrar onde vou ficar dessa vez, a viagem foi longa.
   A recepcionista contorceu o sorriso, deixando-a mais feia. Olhou para Desilusão, o enfermeiro que acompanhou a Felicidade até então:   
   - Pode acompanhar a senhora ao seu novo quarto - Ela grifou com a voz a última parte, com os olhos em uma profusão de êxtase para Felicidade. Quarto era um sinônimo muito cruel. 
   Os dois atravessaram a porta dupla que levava ao corredor principal do prédio, branca como todas as outras, mas com tela de aço para proteger o vidro. Andaram a passos rápidos, não tinha nada de nostálgico em caminhar pelo piso liso e alvo, para nenhum dos dois. Chegaram a uma sala de convivência com com grandes poltronas de estofado verde ao redor de uma tv sem sintonia e muda. Um homem magro, vestindo roupa branca e amarrotada com os cabelos pretos e alguns tufos grisalhos, assistia deitado no tapete circular a uma programação que só passava para ele. Vez ou outra, produzia algum som que lembrava uma gargalhada e a senhora percebeu quem era. Eles passaram pelo velho e Felicidade perguntou assustada para Descontrole:
  - Ele ainda está aqui? Na primeira vez que vim aqui, ele era apenas um menino e ficava fitando horas essa televisão cheia de chuviscos. E da última vez que saí, ele já era um homem em plena idade. Não há esperança para ele?
 - Não, Felicidade... - Falou Desespero com a voz trêmula e grave, parecendo sempre que tentava segurar o choro com todas as forças do grande corpo - Ele é a Infância, digo, foi a infância de alguém. A pessoa cresceu e achou um incômodo te-lo junto. Então decidiu deixar-lo nesse Asilo. A maioria das pessoa fazem isso, mas uma pequena parcela vem visitar seus parentes que deixaram aqui e uma  menor ainda, decide levar-los de novo para morar com eles. O dele, faz 20 anos que nunca mais apareceu. E eu sinceramente acho que ele vai morrer aqui. 
  Felicidade deu uma última olhada para o homem, que permaneceu de costas o tempo todo. Ela concordou com o enfermeiro em uma parte: ele nunca voltaria para casa. Pelo jeito que está alheio a todos, Infância deve pensar que está em casa. Talvez assistindo um velho desenho animado, talvez. É melhor assim para ele, Infância perderia seu sentido de existência se um dia percebesse que estava já ficando grisalho. 
   Enquanto Felicidade e Desespero cruzavam a porta aberta da sala para um pátio interno, ela começou a falar, mas para ela do que para o homem que a acompanhava. 
   - Eu acho que vou morrer aqui também. Essa vez sinto que é a última, Desespero. Eu toda vez peço que seja. Aqui não é lugar para mim. "Asilo", sempre achei esse lugar mais como um velho sótão. Abarrotado de coisas velhas que as pessoas não querem mais. Que um dia, quando for conveniente a elas ou por vergonha te ter nos abandonado aqui, se lembram que existimos. As pessoas as vezes me deprimem, desespero. Se são capazes de fazer isso conosco, que somos parte deles, imagine com as outras pessoas. O mundo fora dessas paredes brancas é todo manchado pela sujeira humana, espero que nunca saía, Desespero.- Ela recobra o fôlego e olha para o maravilhoso jardim. Com árvores de tronco escuro e galhos compridos.- Desculpe-me, eu sempre acabo tendo esse tipo de conversa com você. 
    Eles chegam a uma porta branca com a mesma grade para proteger o vidro. O enfermeiro puxa uma chave do grande molho que tinha pendurado no cinto e enfia no trinco redondo, fazendo destravar o segredo e deixando que Felicidade veja seu novo quarto. Ele tinha uma cama de ferro, um criado mudo, um guarda-roupas pequeno e uma cortina na janela com barras, todos cansativamente brancos para os dias cansativamente exaustos que ela iria passar ali, de novo. Depois que Desespero deixou as malas nos pés da cama e saiu, Felicidade viu que estava realmente sozinha, e isso a entristeceu. O pior medo da senhora era um dia ficar sozinha por completo e ela se lembrou de Infância, imaginando que se não fosse melhor enlouquecer feliz em um outro quarto de uma vida distante. 
   Os dias se passaram tão longos e incontáveis, que ela deixou de se incomodar com o tempo. Ela passava longas horas no jardim, sentada em cadeiras e mesas brancas de ferro em estilo rococó, tomando chá com Sonhos idosos. Uns já indiferentes da sua sina, que bebericavam o chá com os lábios finos e quase incolores, enquanto relembravam a época dourada de suas vidas, de amores vividos, de beijos roubados. De veteranos de guerra que eram heróis, e sobre os heróis antes deles. Felicidade ouvia com um sorriso no rosto. Mas outros eram cheios de rancores, por nunca terem conseguido realizar suas metas, de caírem em vícios, de sonharem com a morte. Pobres sonhos, pensava ela, terminarem esquecidos aqui.
   Certa vez, ela estava conversando com uma velha-sonho que um dia foi atriz, os olhos azuis, quase cegos, se enchiam de lágrimas todas as vezes que ela contava como o seu luxuoso camarim, viva perfumado por buquês de rosas vermelhas, quando a senhora, o jardim inteiro e até os pássaros, ficaram em silêncio. Desespero e mais um enfermeiro passaram pelos internos, carregando uma maca com um pano branco escondendo um volume comprido. Eles atravessaram o corredor, até além dos últimos quartos, até um muro com uma porta preta, acompanhados por todos com os olhos. Eles abriram a porta e Felicidade pôde ver vários pequenos morros cinzas, parecendo tartarugas de pedra até o horizonte. No momento em que aquela porta de madeira crua foi aberta, um vento frio entrou no asilo e levantou suavemente o lençol, mostrando onde Felicidade conseguiu ver, uns tufos de cabelos negros e grisalhos.
   Ela viu muitos passarem pela porta negra. Ela se sentia mais triste quando era um velho sonho que cruzava aquele batente. Até os que chegaram muito depois dela já se foram, a maioria não pelas portas da recepção. Ela já tinha os cabelos brancos e a pele manchada, ficava imaginando quando seria a sua vez de sair também do asilo.
  Uma tarde de um dia que as folhas da árvore começava a nascer, ela viu uma senhorinha vestida de luto, atarracada pelo tempo, entrar no jardim. o Dr.D a acompanhava e ele que quebrou o silêncio entre as duas:
  - Ela veio te levar para casa, Felicidade. Vou esperar vocês depois na minha sala para a parte burocrática, vocês sabem como é todo o processo. Venham quando quiserem, sei que tem muito o que conversar.
  Assim que o Dr.D deixou as duas, a velhinha abraçou a Felicidade o mais forte que seus braços cansados permitiam.
  - Me desculpe, me desculpe - falava entre os soluços- me desculpe te deixar aqui tanto tempo. Sei que a vida foi dura para nós, perdemos muitos que amamos. Mas agora, no fim dessa mesma vida, vim me retratar. Volte comigo Felicidade, não quero morrer longe de você.
  - Volto sim! Volto sim! nada me deixaria mais alegre.
  E Felicidade chorou.