terça-feira, 31 de março de 2015

Teto de Algodão



     A gata preta ronronava no meio do casal que tinham acabado de dar bom-dia um ao outro, mesmo passando das três da tarde. Sem os óculos, os olhos de Carmen pareciam ser da cor mais vívida para Eduardo, apesar do seu daltonismo. E para Carmen os olhos de Eduardo eram nitidamente o borralho mais azul que já vira. Igual um céu impressionista sem nuvem alguma.
     Esse pensamento a fez rir baixinho, escondendo o sorriso bobo no abraço de Eduardo. Ele a acompanhou, sem entender o motivo mas achando aquela risada uníssona a parte mais gostosa de acordar com ela.

    - Me conta porque riu - pede Eduardo tentando tirar o rosto de Carmen do seu peito. Ela descobre metade do corpo e senta-se na cama com a gata no colo.

    - Eu te conto em uma outra vida quando ambos formos gatos. - Responde a menina imitando um sotaque espanhol.


       Déjà-vu. Cada frame do pensamento de Carmen se lembra de algo curioso. Que a nova namorada de seu ex namorado parecia insistir em fazer as mesmas coisas que ela fez. Ir aos mesmos lugares, assistir aos mesmos filmes, ver os mesmos shows. Talvez os mesmos erros também. Era como se Carmen visse uma parte de uma antiga vida repetida, refilmada. E ela não foi boa em seu próprio papel.
       Eduardo atende os miados da gata e abre a porta do quarto. Carmen nem tinha percebido que ela já tinha saltado de seu colo. Ele se deita novamente e levanta o cobertor para que Carmen pudesse deitar ao seu lado. Para que ela pudesse olhar para o céu sem nuvens novamente.

"Talvez eu já esteja em outra vida" - pensa a menina quando Eduardo beija delicadamente seu pescoço. "Talvez eu já esteja"


       Carmem puxa o cobertor, tapando completamente os dois. O céu de Carmen tinha o teto encoberto pelas pálpebras de Eduardo, o dele tinha teto de algodão. E a única coisa que o separava entre a cama e o céu era o corpo de Carmen.





 

quarta-feira, 18 de março de 2015

Morta-pelos-pés



Jaz no chão, o amor que não floresceu.
Jaz no chão, o botão decepado do galho torto.
Jaz no chão, as lágrimas mornas e o soluço rouco.
Aquiles morto, Herácles louco. 
Os grandes permanecem para sempre, mas vivem pouco.
Jaz no chão, meu corpo. 



    Escreveu a poetisa no quarto do casal. A Musa dela dormia nua e ressonava. Tão linda. A poeta deslizou os dedos no cabelo encaracolado de sua amada.

"Morena, sempre soube que seria a flecha no meu calcanhar naquele domingo de outubro, naquele beijo de novembro, nesse 'eu te amo' de dezembro"- Sibilou a poeta, tão baixo que a Musa não ouviu. Nem o homem que dormia ao lado dela ouviu.

    O que se ouviu foi um tiro.

   
   

segunda-feira, 16 de março de 2015

Sentir é muito lento




      "Sinto muito. Sentir é muito lento." - dizia a pichação no muro da esquina que já dobrei. Os olhos baços, as mãos trêmulas. Como queria um cigarro. Andei pelas ruas como se elas e a chuva não existissem. 

    Cada vez que eu levantava minha cabeça, via os sorrisos dos corações atrofiados e eu arcava a boca para que o meu coração atrofiado pudesse sentir-se parte daquela farsa toda. Quase todos os corações são natimortos, em algum ponto da pequena pausa entre os batimentos, eles morrem, mas ainda sim, continuam pulsando sem sentido. Ninguém te para na rua e pede para ver a certidão de óbito dele. Isso você deixa para aquele momento em que homens não choram, mas choram. 

    Finalmente parei no posto e comprei o maço. Opiático e vermelho. Recomeço a andar. Olhos baços, mãos menos trêmulas. Agora tenho meu cigarro. A minha direita, toda uma imensidão de lápides e adeus do cemitério municipal. As minhas costas, todas nossas poucas lembranças e adeus. Acendo um cigarro e em um pequeno êxtase,te trago comigo. O cigarro queima rápido no curto trajeto até a rodoviária. Compro minha passagem e o gosto da nicotina se faz ainda presente, quando o ônibus dá partida. Em algum canto da cidade um coração agoniza e atrofia.
     "Sinto muito. sentir é muito lento" - dizia a pichação no muro da esquina que já dobrei. E nunca mais dobraria.  

terça-feira, 3 de março de 2015

Ausência

Tua Falta é sentida de corpo presente


Desgraçada é a vida
Quando a solidão já é indiferente 


Finge-se contente
Quando a alma está mais ferida
O silêncio é o único confidente


A melancolia é dividida 
E estar só não é tão ruim
Quando tua ausência, por ela for preenchida
Estarei só enfim.