quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Pássaros




Há pássaros que nascem livres. De plumagem simples, mas com um canto que se compara com os mais suaves bálsamos. É deles o mundo. O céu se faz infinito quando abrem as asas e alçam voo, deixando que o destino seja ao sabor do vento.
“Eu não estou aqui e isto não está acontecendo. Eu não estou aqui e isto não está acontecendo. Eu não estou aqui e isto não está acontecendo...”- repetia a garota até que a mente acreditasse ou que a mulher em sua frente fosse embora.
O quarto era banhado com capricho pelos raios matinais do sol de verão, que sinceramente, fazia o corpo da mulher ser mais edível aos olhos. A pele salpicada de pequenas pintas claras, os cabelos curtos e negros, as formas esculpidas por um artista aficionado pela proporção áurea.  O pequeno cômodo quase não suportava a tensão daquele momento, quando ela se despiu.   

“Posso, ao menos, saber seu nome?”- a frase foi cuspida em uma calma histericamente disfarçada.

“Não Amanda, minha querida, não saberá meu nome e talvez nem se lembre de que eu estive aqui. Você...quer... que... as... vozes ...cessem, não quer?”- A medida que o som foi se esvaindo pela garganta da mulher, a voz parecia mais inumana. Antes que a garota tivesse tempo para ter medo, a mulher lhe tomou pela face e lhe sorveu o ar em um violento beijo.

                               




         Dor de cabeça novamente, o quarto à deriva, tentarei chegar ao banheiro em passos curtos.  Meu corpo não obedece. Que horas são¿ Ainda tem luz lá fora. Mas isso não me ajuda muito, não sei se significa se dormi algumas horas ou acordei na tarde do dia seguinte, ou do seguinte, ou do seguinte. 
         Passos no corredor, uma voz familiar afunilada. Meu pai.

“Pai, pai..”- não escuto minha voz.


“Pai, está me ouvindo...”- desespero começa a formigar minhas mãos

“Ele está se aproximando da porta,  penso  em agonia, GRITE!”

“PAAAAAAAAAI!, AJUDAAAA!” – Nada, o que houve comigo¿ Que monstruosidade aquela mulher fez comigo? O que EU fiz comigo?

“Ele está voltando ao corredor, espera, porque ele voltou com enfermeiros?”

“Não... isso ...dói”-tento falar para eles quando amarram a borracha firme no meu braço.

Espetam uma agulha fria e minhas veias ardem. Choro, mas ninguém pode me ouvir.

               





Um corvo pousa na branca janela hospitalar. Uma menina o admira com os olhos úmidos tornam o verde mais vivo da íris, como se fosse uma terra que almejava ser visitada pela chuva novamente. Lágrimas se acumulam nos olhos, se equilibram, mas não rolam pelo rosto. O dia está nublado lá fora. Ela sorri e passa a mão no curto cabelo loiro.  Olha em volta para as outras meninas do quarto, todas adormecidas. A porta se abre sem som, só com uma leve corrente de ar. Uma enfermeira  quarentona de quadris largos, cabelos negros e curtos, traz uma bandeja com dois copos de plástico até a cama da garota. Um com um punhado de remédios de todas as formas e cores e outro com água.


“Amanda.. acordou bem hoje, querida?”-diz com uma voz suave e treinada para ser assim.

“Hoje eu vou ser uma andorinha novamente¿ Quero ir para o sul... Andorinhas migram para o Sul no verão... talvez até veja meu pai.”  


“Pode sim, é só tomar seu remédio, querida...”

“Mas se eu tomar, não vou poder sair daqui hoje. As vezes quando eu durmo, ela vem me visitar e eu vejo a cidade de cima, o vento é frio perto das nuvens, mas eu gosto. Não... quero tomar isso, hoje... – Amanda coloca as mãos na boca e  balança negativamente a cabeça.
                

“Quem vem te visitar, Amanda, uma amiga? - Indaga a enfermeira assustada com a segurança do hospital
                

“Ela" - aponta a garota ligeiramente para a janela, para voltar a tapar a boca.
                

“Ah... sua amiga 'corvo'.- Fala a mulher aliviada, as vezes se esquece de quais são as suas pacientes.- “Hoje você não vai poder ser uma andorinha, Amanda. Não, não chore... shhhh, shhh, calma. Toma aqui, toma.”- Ela a envolve em um abraço e a garota deixa que as pílulas sejam empurras garganta a baixo.

“Posssssso... saber seu nome?- fala Amanda com a língua dormente.
               

“Não Amanda, minha querida, não saberá meu nome e talvez nem se lembre de que eu estive aqui. Você...quer... que... as... vozes ...cessem, não quer?”.





quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Recomeço?


     Nunca consegui conviver bem com velhas perdas. Elas geralmente tem aquele tipo de assunto saudosista de "no meu tempo...".Passam horas conversando contigo com os olhos vagos em alguma lembrança. Relembram o tempo que foram o futuro de alguém, que viviam felizes em seus sonhos.
  Velhas perdas viveram demais em um mundo que já não se encaixam. Sentem saudade de coias simples que você já não pode lhes dar. Um abraço de quem vocês amaram, a expectativa de um sorriso, ouvir seu coração fora do ritmo. Então elas te olham fundo nos olhos e você sente-se culpada por coias que fez, deixou de fazer, pensou em fazer. Por isso não consigo lidar tão bem com elas.

   Quando essas perdas estão no começo da existência, você dá mais atenção a elas, seca seus prantos, passa noites acordadas vigiando-as. É uma companhia que te consola quando está se sentindo realmente sozinha. Mas isso não é para sempre. Elas envelhecem e você segue sua vida.
   Tem dias que você acorda e se lembra de alguma, ou quando está preparando um café. Se lembra de como foi dolorosa a fase em que a vida lhes apresentou. Suspira fundo, vai ouvir uma música e pensa realmente se pode supera-la.
   A maioria você deixa que enterrem em uma cova qualquer e sente raiva de você, mas a vida só pode ser vivida assim. Mas tem aquelas Velhas perdas que nunca se vão, porque deixar que desliguem seus aparelhos significa deixar morrer uma parte sua que sentiu, que amou, que viveu. É deixar-se esquecer algo que realmente te marcou.
  No fim, quando seu último suspiro chegar, talvez uma Velha dor te venha fazer companhia e segurar sua mão. E talvez só ela. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Magoatecária

Madrugada
Mal Grudada
Na pálpebra
Amanhece cheia de água
Vira rima inconstante
Olhos pesados
Passado um instante
Lembrança errante
Guardada na estante
De quem cataloga mágoa

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Eternidade de um coração roubado




     A menina corre desesperada pela mata virgem. Os galhos são insensíveis chicotes na face negra da garota, o sangue escorre em grossos filetes onde a vegetação corta, como que querendo expulsar a visitante indesejável. Ela puxa o ar noturno com os pulmões exaustos enquanto as pernas vagueiam e tropeçam pelo breu de arvores densas. Ela cai, as mãos impedem que o seu rosto chegue ao chão enlameado pelas chuvas insistentes daquela semana, mas não impedem que tingam de barro a bermuda jeans e a blusa azul básica. Ela se levanta em um pulo, as palmas da mão estão ardendo, a pele escura brilha de suor sangue e lágrimas. Toma o ar, o mais profundo que pode, e recomeça a correr, porque o inferno vem em seu encalço.

     Ela chega ao asfalto e não sabe mais onde está. A rua deserta com postes sem luz, faz suas entranhas se contorcerem em ângulos dolorosos. Aquele frio na espinha irracional se apodera do corpo molenga. Ela desaba de joelhos. O fim logo vem e ela reza, trêmula.
    Grandes olhos cor de âmbar vão surgindo na escuridão verde.

"Estou aqui. Evocou-me. Fizeste seus desejos por meio de meus termos... agora vim revindica-los" - O ar todo se esfria com a voz não-humana da criatura. O som grave faz tudo se silenciar. As árvores não ousam se mexer e o coração dela desejaria estar imóvel também.

"Mas valeu o preço?"-Mãos longas e finas, como um graveto seco tocam o ombro nu da garota que empalidece instantaneamente. O toque lhe congela os movimentos, ela nada fala, nada faz. O coração acelera, machucando o peito. E a criatura prossegue.

"Vieste até meu bosque, proferiste as palavras, finalizou o contrato com teu primeiro sangue. Como parte dele, também preciso lhe perguntar se entregará de bom grado..."


    Antes de poder finalizar, a coisa se coloca a frente da garota. Ela agora pode ver seu perseguidor. A pele branca e manchada como um tronco de árvore velha, os cabelos cinzentos e longos, magro e de características quase humanas, se não fosse pelos olhos âmbar opacos;imóveis e pela falta de nariz e boca. Os olhos se acendem e aquilo termina a frase:

"... entregará de bom grado seu coração?"- sua frio, faz-se um nó na garganta, os olhos giram na órbita e ela devaneia.

   A cena se faz viva, como o despertar de um longo sono. A luz da fresta da porta de madeira, deixa o quarto semi iluminado pelos raios de sol invernal. Dois pares de olhos trocam as confidências daquele momento. A cama tem cheiro dos dois. Ela se entrelaça no corpo do garoto, que lhe dá beijos curtos no pescoço e ombros enquanto ela se aproxima. Risos baixos. Clima frio. Ela descansa a cabeça e todos os medos no peito dele. Duas pessoas no limar de ser estranho para o outro, sem as frustrações corriqueiras, só as descobertas que fazem as borboletas inválidas do estômago terem saudade de alçar voo. Um par de mãos se entrelaçam:

"Gostaria de poder te dar um presente - diz com voz tímida a garota"
"E porque não pode?- indaga o menino com a testa franzida
"O que eu quero te dar já não é meu..."-ele continua com a mesma expressão e ela prossegue.

"Gostaria de te dar meu coração, mas já o tem."

   Ela se afunda em seus braços, e a cena vai se apagando, como a última chama de uma vela antes se consumir.


  Os olhos âmbar continuam a encarando, mas agora eles parecem úmidos. A pele do rosto de tal criatura tem longos caminhos de condensação. Se não fosse o sereno da madrugada, que molhava também a grama da beira da estrada, ela poderia supor que tal coisa tinha chorado. O corpo não tremia mais de medo e nem de frio. Ela respira profundamente e deixa aquela pequena nuvem de vapor, esvair lentamente de sua boca carmim. Prossegue com a voz monótona:

"Sim, repito agora as palavras do meu juramento:

 Pelos deuses antigos que um dia pisaram nesse chão.
 Que o amor seja recíproco.
 Ou entrego a vós meu coração." 


  Ela se ergue e a criatura se aproxima com os dedos longos do peito da menina. Crava-os na carne, o sangue esguicha tingindo a pálida aberração. Ela não exprime som algum, enquanto tem seu peito dilacerado. O único som presente é o estalar dos seus ossos, quando tem a caixa torácica partida. Um som seco e curto, um estalido e acabou. As falanges pálidas parecem pincéis encharcados de tinta fresca quando saem de dentro do corpo inerte e ainda de pé da garota. Ele tem o coração pulsante fechado nas mãos secas, como uma gaiola de vime.

"Tudo que vocês Humanos dizem ser eterno, morre prematuramente. Só a morte é infindável."- diz tal coisa, olhando para os olhos frios e sem vida da menina antes de se retirar e desaparecer no bosque, como se nunca tivesse existido.

    O corpo da garota começa a se transmutar lentamente, iluminado pela rósea aurora que surge longe no horizonte infinito. A pele escura se torna amadeirada e cheia de vincos. Os braços se erguem pateticamente, como se ela fosse uma marionete. Os dedos se alongam e florescem. Galhos e mais galhos vão crescendo em uma velocidade acelerada. O corpo se expande, se tornando um tronco roliço e raízes fazem remexer a terra.

   Perante o vento cortante da madrugada,sibilando em um únco tom, a árvore nova e as demais,parecem lamentar dolorosamente.