quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Quando não escrevo



Nas coisas que não concebo,
tem sempre uma essência sua
Minha inspiração, nascida no Érebo,
tem morte prematura

Minha escrita, agora percebo,
Não vive pelo traço da melancolia crua.
A vontade que guia pena,
são minhas palavras querendo ser suas.

O poeta amaldiçoado,
toda sua obra condena.
Textos inacabados 

e minhas palavras te escrevendo poemas.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Cefaléia Crônica

            Eram nove horas quando o alarme tocou. A cama estava confortável e quente como um abraço nunca esquecido O lençol escorregava preguiçosamente enquanto ela fazia uma tentativa frustrada de se sentar. Ainda era cedo para sair da cama.
      As pupilas opacas correram para janela aberta. O tecido leve da cortina levitava como um vestido em movimento.
 A brisa quente estava convidativa para um passeio. Ela se imaginou fora dali, no parque ao lado da sua janela. Terminando mais um romance água-com-açúcar e imaginando se os casais que caminhavam juntos eram tão felizes e clichês também. Ela forçou o tronco enquanto apoiava os braços paralelamente ao corpo. Mas ainda era cedo para sair da cama.
            A enxaqueca martelava na cabeça de novo, pega desprevenida pelo alarme. E o calor só piorava a dor. Lembrava da época que vivia normalmente, sem ter os vasos capilares pulsando na têmpora. Quando conseguia sair à noite para se divertir sem ter a cabeça explodida pelos sons da cidade. Buzinas, som alto, gargalhadas. Como até o barulho do teclado parecia pancadas no cérebro. Foi se isolando a medida que a dor de cabeça ia se tornando mais freqüente. Depois de cinco meses e vários especialistas, sem melhora alguma, ela não saía mais de casa e mandou isolar acusticamente todo o apartamento. O único convívio com o mundo quando os analgésicos funcionavam, era aquela janela aberta para o pequeno parque silencioso.Seu milagre para a loucura do isolamento. Os amigos não a visitavam mais, porque tinham que manter silêncio absoluto. Não se interessava por mais ninguém quando imaginava a voz da pessoa ecoando e rasgando sua cabeça. Ela dedicava a vida a dor constante, como uma amante encarcerada. 
Cada detalhe monótono do quarto do pequeno apartamento parecia mais vívido agora, a tinta alva; os dois quadros com tema floral; o pequeno guarda-roupa de madeira escura, combinado com a cama e o criado mudo. Suas mãos tatearam debilmente o móvel procurando um copo de água, achou o frasco de calmantes quase vazio. Ela havia tomado alguns para a maldita enxaqueca que latejava todos os dias, como sinos infernais. Ela calculou, pela dosagem, que iria levantar depois das duas da tarde. Ainda era cedo para sair da cama.

            Eram nove horas quando o alarme de incêndio tocou.

terça-feira, 31 de março de 2015

Teto de Algodão



     A gata preta ronronava no meio do casal que tinham acabado de dar bom-dia um ao outro, mesmo passando das três da tarde. Sem os óculos, os olhos de Carmen pareciam ser da cor mais vívida para Eduardo, apesar do seu daltonismo. E para Carmen os olhos de Eduardo eram nitidamente o borralho mais azul que já vira. Igual um céu impressionista sem nuvem alguma.
     Esse pensamento a fez rir baixinho, escondendo o sorriso bobo no abraço de Eduardo. Ele a acompanhou, sem entender o motivo mas achando aquela risada uníssona a parte mais gostosa de acordar com ela.

    - Me conta porque riu - pede Eduardo tentando tirar o rosto de Carmen do seu peito. Ela descobre metade do corpo e senta-se na cama com a gata no colo.

    - Eu te conto em uma outra vida quando ambos formos gatos. - Responde a menina imitando um sotaque espanhol.


       Déjà-vu. Cada frame do pensamento de Carmen se lembra de algo curioso. Que a nova namorada de seu ex namorado parecia insistir em fazer as mesmas coisas que ela fez. Ir aos mesmos lugares, assistir aos mesmos filmes, ver os mesmos shows. Talvez os mesmos erros também. Era como se Carmen visse uma parte de uma antiga vida repetida, refilmada. E ela não foi boa em seu próprio papel.
       Eduardo atende os miados da gata e abre a porta do quarto. Carmen nem tinha percebido que ela já tinha saltado de seu colo. Ele se deita novamente e levanta o cobertor para que Carmen pudesse deitar ao seu lado. Para que ela pudesse olhar para o céu sem nuvens novamente.

"Talvez eu já esteja em outra vida" - pensa a menina quando Eduardo beija delicadamente seu pescoço. "Talvez eu já esteja"


       Carmem puxa o cobertor, tapando completamente os dois. O céu de Carmen tinha o teto encoberto pelas pálpebras de Eduardo, o dele tinha teto de algodão. E a única coisa que o separava entre a cama e o céu era o corpo de Carmen.





 

quarta-feira, 18 de março de 2015

Morta-pelos-pés



Jaz no chão, o amor que não floresceu.
Jaz no chão, o botão decepado do galho torto.
Jaz no chão, as lágrimas mornas e o soluço rouco.
Aquiles morto, Herácles louco. 
Os grandes permanecem para sempre, mas vivem pouco.
Jaz no chão, meu corpo. 



    Escreveu a poetisa no quarto do casal. A Musa dela dormia nua e ressonava. Tão linda. A poeta deslizou os dedos no cabelo encaracolado de sua amada.

"Morena, sempre soube que seria a flecha no meu calcanhar naquele domingo de outubro, naquele beijo de novembro, nesse 'eu te amo' de dezembro"- Sibilou a poeta, tão baixo que a Musa não ouviu. Nem o homem que dormia ao lado dela ouviu.

    O que se ouviu foi um tiro.

   
   

segunda-feira, 16 de março de 2015

Sentir é muito lento




      "Sinto muito. Sentir é muito lento." - dizia a pichação no muro da esquina que já dobrei. Os olhos baços, as mãos trêmulas. Como queria um cigarro. Andei pelas ruas como se elas e a chuva não existissem. 

    Cada vez que eu levantava minha cabeça, via os sorrisos dos corações atrofiados e eu arcava a boca para que o meu coração atrofiado pudesse sentir-se parte daquela farsa toda. Quase todos os corações são natimortos, em algum ponto da pequena pausa entre os batimentos, eles morrem, mas ainda sim, continuam pulsando sem sentido. Ninguém te para na rua e pede para ver a certidão de óbito dele. Isso você deixa para aquele momento em que homens não choram, mas choram. 

    Finalmente parei no posto e comprei o maço. Opiático e vermelho. Recomeço a andar. Olhos baços, mãos menos trêmulas. Agora tenho meu cigarro. A minha direita, toda uma imensidão de lápides e adeus do cemitério municipal. As minhas costas, todas nossas poucas lembranças e adeus. Acendo um cigarro e em um pequeno êxtase,te trago comigo. O cigarro queima rápido no curto trajeto até a rodoviária. Compro minha passagem e o gosto da nicotina se faz ainda presente, quando o ônibus dá partida. Em algum canto da cidade um coração agoniza e atrofia.
     "Sinto muito. sentir é muito lento" - dizia a pichação no muro da esquina que já dobrei. E nunca mais dobraria.  

terça-feira, 3 de março de 2015

Ausência

Tua Falta é sentida de corpo presente


Desgraçada é a vida
Quando a solidão já é indiferente 


Finge-se contente
Quando a alma está mais ferida
O silêncio é o único confidente


A melancolia é dividida 
E estar só não é tão ruim
Quando tua ausência, por ela for preenchida
Estarei só enfim.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Sonhos do Abismo: Demos Oneiroi



      Os últimos minutos de luz solar estendem-se caprichosos no parque. As cores do inverno projetam-se nas poucas folhas desbotadas das árvores e no rosto nacarado daqueles que aproveitam o ameno fim de tarde.  Vez ou outra uma corrente fria bagunça franjas desavisadas e faz mãos procurarem bolsos. Poucas nuvens alaranjadas se espalham no céu azul-claro, característico da estação.  Em passos lentos, um homem fotografa atentamente o lugar. Como um espectro, ele caminha pelo parque roubando pequenos momentos. Um sorriso dado em resposta a um gracejo. Uma testa franzida enquanto se lê um livro. O leve bailar dos galhos com o vento. Segundos do passado que são eternizados na simples mecânica de se apertar um botão.
Os olhos atentos do fotografo são desviados para um banco próximo. Uma menina pálida de longos cabelos negros imersa em sua leitura. Ele aponta a câmera para tal cena e tira uma sequência de fotos. Seu rosto se contorce ao olhar o resultado, porque em todas a imagens o banco aparecia vazio. Ele se prepara para tirar outra foto quando percebe que ela o observava fixamente. O homem vê esse olhar como um ótimo momento para se apresentar.

- Posso me sentar? – Diz o fotógrafo com um sorriso largo ao se aproximar


        A mulher fecha o exemplar da "Divina Comédia" sem tirar os olhos perscrutadores do rapaz. Fixamente, os dois pares de olhos dançam. E ela sabia conduzir com maestria essa valsa do abismo. Os olhos negros da moça faíscam e ele percebe que sabe o nome dela, antes de perguntar, antes de ter o ímpeto de perguntar. Melinoe.
        
"Dante"- Sussurra a voz que não está mais lá. 
           
        Ele pisca os olhos freneticamente até entender a realidade. E ela não fazia sentido algum. Aquele livro deixado no banco vazio. Dante franze o cenho, confuso, quando uma voz conhecida se torna a voz de sua própria consciência e lhe ordena. O mundo não existira mais para ele, tudo o que podia sentir era a voz dela vibrando num eco perpétuo dentro de sua mente. Augusta presença, como uma deusa entre os mortais. Nem Byron poderia descrever aquela figura de pele pálida e olhos de noite. 
         Todo o caminho para casa acaba sendo uma distorção da vontade para Dante. Ele se senta rígido no banco do ônibus e nem percebe acenos de conhecidos quando desce no ponto perto de casa. Algo além da intuição, o avisa que das sombras vem a morte, mas seus sentidos estão surdos e entorpecidos. A vida toda nunca pareceu ter existido. A mente era um pêndulo repetindo o som da voz de Melinoe. Sobe as escadas num passo mecânico, quase uma marcha para seu próprio enforcamento. As luzes do corredor apagadas, fazem seus passos pesados ecoarem mais fúnebres e os vizinhos sentirem um arrepio sem saber o porquê. Ele destranca a porta num gesto mecânico e cambaleia até o sofá onde desaba. 
       Da escuridão vem um som afunilado e repetitivo. Um par de olhos amarelo fluorescente, se aproxima e escancara a pequena boca. E no caminhar maldito das horas mortas, mais gatos surgem. Quatro gatos brancos. Com o pelo em riste e sibilando em comuna com velhos pesadelos e criaturas mais antigas que o próprio medo. Mais um miado longo e conjunto. As sombras se engrandecem e apenas os glóbulos reluzem. Outro miado e as sombras se esparsam. Cheiro metálico e pastoso. O pelo antes branco dos animais, estão agora, tingidos de um sangue escuro e seco. O som de suas vozes é um crescendo de pura dor.
      Quatro da manhã e ele desperta em um espasmódico susto no escuro. Sua gata cinza-fosco, brinca com o colar étnico em seu pescoço e mia baixinho. O corpo de Dante estava em uma posição estranha no sofá desigualmente confortável para seu tamanho. Nenhuma recordação de que havia adormecido ou que havia chego em casa, a última lembrança na mente anuviada e confusa é ter estado no parque. Na penumbra fracamente iluminada pela luz da rua que vem da sacada da sala, ele pode distinguir a forma compacta em cima da mesa de vidro que ocupa boa parte do cômodo. Ligeiramente, ele anda em passos ansiosos até a mesa e liga a câmera em suas mãos tremulas. No display da máquina, aparece a mesma foto que se lembrava de ter tirado. O banco vazio.
      Enquanto ele franzia a testa e tinha certeza que havia uma mulher neste banco, ouve uivos. Não um, não dois. Mas de todos os cães da rua. E eles parecem ir se aproximando do apartamento.
      A cadela de porte pequeno da residencia uiva num som fino e anormal, fazendo Dante sobressaltar. No mesmo momento, ouve-se batidas repetitivas na porta da frente, fazendo seu estômago dar nós. Então, sem sobreaviso, elas cessão e o único barulho no apartamento deserto é o coração de Dante, dando punhaladas em seu peito. Suas pernas tremem, como se não aguentassem o peso do próprio corpo e do pavor.
      O som seguinte lhe traz uma calma apática.

-Dante! Abra a porta! É Melinoe quem ordena! - Ele caminha em solavancos bobos e deixa-a entrar, sem nem mesmo a questionar ou a si questionar de como a mulher conseguiu entrar pela porta do prédio e não fazer barulho algum ao subir o curto lance de escadas. 



      Em um movimento tão rápido quanto um raio é perceptível aos olhos humanos, ela enlaça seus lábios rubros nos trêmulos dele. A língua e o desejo avançam sem cabresto, fazendo o casal girar constantemente o rosto. Ele a envolve em um abraço pela cintura, trazendo seu corpo estranhamente frio mais perto. Com um leve movimento a comprime contra o apoio do sofá, enquanto Melinoe  trança os largos quadris de Dante com suas coxas, fazendo assim, desnuada-las do longo vestido preto.
      As mãos de Dante logo percorrem a carne alva e rija como o granito. Melinoe solta um arfar do fundo da garganta, quase um urro, quando a ponta dos dedos se aproximam do meio das coxas. Ela agarra o pescoço de Dante com uma das mãos, enquanto a outra apoia-se no móvel. Passa a língua libidinosa na jugular do rapaz com uma calma calculada, desacelerando a cena. A artéria pulsa e a Besta protesta, fazendo os olhos de Melinoe arder de sede.


-Hmmmm... seu cheiro... - fala enquanto o olha fixa e profundamente, com o sorriso em carranca. Dante tem aquela sensação estranha novamente, como a presa tem, milissegundos antes de ser abatida.
       

       A gata cinzenta,  senta-se imóvel no umbral do pequeno corredor. Os olhos amarelos do animal observam cada passo da luxuriosa cena, seus ouvidos captam cada modulação de insânia que escapa daquelas bocas. O bicho se aproxima do sofá e a cada passo, transformações sutis moldam o seu esqueleto. Primeiro o tom do pelo muda para um preto lustroso, o globo ocular vai se tornando mais humano. Numa erupção de sombras o corpo felino agiganta, contorcendo-se em ângulos obtusos. A criatura se torna bípede em estalos secos e ecos. As sombras do cômodo dançam em volta do corpo esquálido e níveo, formando um manto vivo e cobrindo a criatura que nunca foi humana, mesmo tendo existido como uma.

                Melinoe sorri no meio de um dos infinitos beijos, fazendo Dante reduzir o movimento pélvico e olhar nos olhos obsidianos da mulher. Ele pergunta algo frequente, esperando uma resposta comum, de uma trepada casual:


- Tá bom, né? - A frase curta, falada num tom morno e rouco, desperta uma risada histérica em Melinoe. Dante franze a testa de ébano polida pelo suor.

- Ri por quê?- Um arrepio percorre o corpo de Dante, quando a mulher traz a boca ao ouvido dele.

- Porque vai morrer. 



      Em um átimo, o manto da criatura que os observava se refaz em mil tentáculos de sombra. Eles deslizam pelo chão, quase líquidos, até encontrar a carne de Dante. Antes que ele pudesse inflar os pulões em um grito de horror, os tentáculos negros entram pelas suas narinas, frios úmidos, como o o toque da morte.
      Dante abre os olhos no vazio do abismo. E sente o nada. Vozes afuniladas e distantes, entoam um ritual em uma língua velha e estranha. O tempo era o mesmo de quando se sonha antes de despertar, infinitamente impreciso. O abismo agora sussurrava seu nome. Quando se tem um pesadelo mergulhado no éter e no érebo, o tempo se torna imprecisamente infinito.