sexta-feira, 26 de abril de 2013

Saudadear


  
  "SAUDADE". Sempre achei meio vago e inteiramente injusto, ser classificada, apenas, como substantivo. Ela amorfa, anacrônica e "sinestésica" demais para a própria definição de substantivo. Uma classe só, limita o que ela própria é e quem a sente. Sentir saudade- sentir é muito pouco, caba e é traduzível. E quem "sente" deveria ser mais que um "sentidor de saudade".
  Saudade deveria ser verbo: Saudadear. Assim, ninguém mais sente saudade, está saudadeado. Desse jeito, o sujeito vai saudadeando, enquanto a vida vai saudadeindo.
  Repito: saudade deveria ser verbo. Para quando não couber nessas tortas palavras e dentro do peito, caber e dure, todo o tempo do infinitivo.


quinta-feira, 25 de abril de 2013

(Texto inspirado na ideia do conto: "Vende-se sapatos de bebê nunca usados",de Ernest Hemingway)

  
  E tudo virou uma poça na quina da calçada. A multidão tropeça no sulcos do cimento, suja os sapatos no sangue. Ambos frescos. No terraço, não há nada além de um punhado de cinzas. Tudo o que havia lá antes, está agora na calçada: Um homem esfaqueado, outro com um cigarro. 

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Ernest Hemingway: Conhecido por ter escrito "Por quem os sinos dobram", foi uma vez, desafiado à escrever um conto de apenas 6 palavras. Ele surgiu com a genial frase : "Vende-se sapatos de bebê nunca usados". A história do conto pode ter diversos meios de ser imaginada, mas o final é, invariavelmente, trágico.   


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Trecho: Fogueiras da Alma | O Conto da Queda



  Esse trecho foi uns dos últimos que eu "joguei". Ele faz parte de um RPG do tipo storyteller do sistema Vampiro, A Máscara. Por meses, eu e Devus, meu narrador, construímos (ou desconstruímos)  a vida da pequena inglesinha Joan Winchester nas linhas duras do Sabá. Nas entrelinhas, ganhei um amigo e confidente, um Templário que empunhava as palavras como espada.
  Hoje em dia estamos tão felizes para nos concentrar nos nossos personagens tão amaldiçoados, que o conto continua em declínio sem nós. Eles que nós perdoem, ou se vinguem, por ainda termos um coração pulsante.

Personagens: Ductus (clã Brujah antitribu) 
                   Joan (clã Toreador antitribu)

Cena: Indo para uma parte rural da Inglaterra, onde Joan aprenderá um pouco do Sabá e deverá fazer sua primeira caçada, sendo Ductus o seu tutor. 


[...] O carro avança apressadamente por entre as carcaças de metal, o ar era carregado de ferrugem e histórias. O abandono se fazia presente ali em todo canto, e as aves agourentas que antes repousavam pareciam extremamente incomodadas com a presença de mortos no matadouro.
  Aqui e ali, uma sombra se levantava e te roubava a atenção. Elas cresciam e mudavam de forma a cada curva e a cada novo ângulo tomado pelo veículo, deslizando por sobre as superfícies acidentadas com uma leveza impossível e plena. Elas seguiram o carro por cerca de setenta metros e então retornaram ao descanso em duas dimensões. Seu companheiro não pareceu se importar.
  Vocês cruzaram uma porteira velha e decrépita que ha muito custo se mantinha em pé, e a estrada a sua frente era uma listra negra em meio a um mar de árvores até onde você conseguia enxergar. Elas eram altas e quase que uniformes, calmas de uma maneira que você sabia que nunca ia ser. A lua reluzia em um amarelo cansado e haviam tantos pontos brilhantes no céu que o sol parecia nunca ter existido.
  Você suspira e no suspiro vem a senciência. Cada uma das estrelas é um mundo de beleza quente e perfeita além dos sentidos. Luminosas, infindáveis, inalcançáveis – tudo nelas te lembra reflete você, como se um milhão de espelhos tortos se dobrassem para te observar. Lá, naquela luz, existem todas as cores e todas as dores do universo – Um pedaço de você esculpido pelo capricho do acaso e sua navalha insana. Seus lábios se curvam como se por instinto você tentasse fazer uma reverência a grandiosidade inerente do cosmo, e então, vem a voz...

"Foco. Concentração. O sabá não é para fracotes."

  Subitamente o brilho deixa de existir. Os pedacinhos do paraíso tornam-se pontos de luz perdidos na imensidão do vazio. Opacos. Mortos. Algo gemeu e se contorceu em seu peito. A besta. Ela queria a beleza de volta. E ele tirou ela de você.
  "Não se deixe levar pelo legado do clã e casa das rosas. A maldição do hedonismo é uma ilusão que te fará achar beleza em cada pedra do caminho. A contemplação leva ao aprendizado. A adoração leva a traição. Essa não é uma lição para uma noite, mesmo sua criadora ainda não ha dominou, mas você deve se esforçar. Não se iluda, irmã, não podemos nos dar a esse luxo. Eu meditei sobre o que você disse sobre sua mãe, e lhe digo que ela ainda esta nesta cidade e que quando a encontrarmos eu espero que você seja capaz de fazer dela o exemplo pelo qual os outros traidores serão julgados. Nós não somos um bando errante levando a espada de maneira cega a inimigos desconhecidos, nós somos os açougueiros do diabo, somos destruidores de déspotas, assassinos de tradições e a mão armada dos bispados do grande norte. Nada disso te faz sentido agora, mas em breve, você vai ter que ser uma assassina. E é isso que vou te ensinar essa noite. Diga-me, criança, o que gostaria de destruir?"

  O ódio te cega por um instante e você se imagina girando o volante em direção as árvores do acostamento. Em sua mente, você vê sangue e fogo e dor e destruição. Ele tirou você de si mesma quando roubou o brilho de suas estrelas. As palavras que saem da boca dele te tocam com uma leveza calculada e quase profissional. Ele era seu instrutor na arte da matança, nada mais. Metade do discurso não faz sentido algum, a outra metade eram promessas e ensinamentos que ele parecia já ter repetido um sem fim de vezes. Ele continuava indiferente enquanto dirigia e esperava sua resposta.
  
 E ao longe, a silhueta da cidade começava a nascer.

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  Percebo que estou com o corpo totalmente arcado em direção ao motorista, como uma naja próxima a sua presa. Meu corpo treme, como se pudesse sentir o sangue correndo quente nas veias e formando manchas rubras em minha face, mas esse tipo de raiva, esse tipo... controlável de raiva morreu comigo. Uma raiva imortal e inumana corre por leitos secos dentro de mim, preenchendo o lugar de tudo que fosse mais complexo de sentir.
  "Ele roubou seu pequeno momentinho feliz. Ele não tem seus dons... é apenas um monstro encabrestado pelo seu dever. Ele nunca vai entender, nunca verá beleza no seu trabalho. Ele é a âncora que te deixa nesse pântano-pôs-vida. Corte, corte, corte.. em pedacinhos"- é o que ouço ecoando em algum canto da mente enquanto encaro o rosto do meu tutor. Mas é como se eu fosse um espectro, diante da indiferença dele. 
 "[...] e quanto a minha mãe... o julgamento dela será o meu próprio. Eu não sei o quão forte eu sou.. nem sei se estou preparada para me despedir de duas famílias de uma vez, irmão."
 Me encolho no banco, enquanto toda aquela fúria vai se dissipando e dando lugar ao breu noturno, lá fora e dentro de mim. Olho os pequenos pontinhos:
 " Do que adianta toda essa beleza, se quando eu posso vê-las, já terão se consumido? Mortas a tanto tempo quanto tiveram de vida. Vocês são tão desgraçadas como qualquer um de nós.[...]"













terça-feira, 23 de abril de 2013

O enterro de Jaqques Bonhomme*



Fazia tanto frio naquela tarde cinza, que até o vento lamuriava com aspereza nos galhos das velhas árvores. Retorcidas por outros invernos piores, só concordavam, cansadas, com o lamento. O vento podia choramingar e ulular o quão alto quisesse: castanheiros; pinheiros; amendoeiras; faias; nogueiras; abetos;sobreiros;carvalhos, nenhum se importava realmente com as vozes do vento.
Toda a natureza estava em um silêncio mais que inanimado, ouvindo o choro abafado do menino nas saias de sua mãe. Ela não chorava. Mantinha a face dura com os olhos vidrados na lápide em que dizia "Thierry Gauthier - Amado pai, honrado marido", enquanto afagava mecanicamente os cabelos do pequeno. Ele se demorou na última prece, mas o frio foi mais teimoso, e já ardia as pequeninas mãos entrelaçadas. Ela só pediu, não, implorou, ao Criador que encontrassem a besta selvagem que tirou seu esposo e pai do seu filho do âmago do lar.
A mãe secou as lágrimas do rosto do garoto. E eles se foram, como dois corvos desnorteados.
Ouve-se arrastar de folhas. Ouve-se arrastar de passos. Um homem maltrapilho alto e magro (tão alto e tão magro quanto os pés possam sustentar), saí de trás das mesmas velhas árvores condescendentes arrastando uma pá (arrastando tanto o quanto um homem tão alto e tão magro, poderia arrastar uma pá). Ele anda até a sepultura, indiferente ao lamentoso vento e indiferente aos que ali antes prantearam, ele cava. Ele cava com gana, espalhando terra a esmo e sujando ainda mais os trapos que vestia. Ele cava como sua vida dependesse disso. Não, ele cava como se algo mais importante que a vida dependesse disso.
A pá encontra o caixão toscamente feito em um baque surdo. O homem se ajoelha e retira com as mãos a terra que falta, em suspiros longos e exaustos. Ele parte a tampa e com os mesmos suspiros longos e exaustos ele enfia a mão dentro do bolso colete do recém-enterrado. Pega, com as mãos trêmulas e imundas uma pequena fotografia : Uma mulher de cabelos castanho-claros e olhos ternos, também castanho-claros, segurando um bebê de poucos dias de vida. Ele mete o retrato sabe-se-lá-em-que-bolso e sai da cova.
Antes de refazer o trabalho do coveiro, ele para e olha para o homem dentro do buraco. Ou o que sobrou dele. Ou melhor, o que sobrou das sobras do pescoço para baixo. O cadáver não tinha mais o que poderia ser chamado de rosto, só sabia que "era um" porque AINDA dava para ser localizado entre as orelhas.
Era tudo um amontoado retalhado de carne com grandes crostas negras de sangue seco. Tinha partes do "rosto" que os ossos estavam expostos e desgastados até o tutano... Que descanse em paz!
A terra começa a ser devolvida ao caixão destampado. Thierry Gauthier não estava naquele túmulo, porque Thierry Gauthier e a "Besta Selvagem de Vichy"- Como ficou conhecida- são a mesma coisa, a mesma que agora  joga  as pás de terra.
E o homem vivo começa um meio diálogo, meio monólogo com o homem morto:
" Eu tive tanta sorte em encontrar um qualquer  vagando na estrada aquela noite, eu tinha tanta.. sede. E.. logo iam parar as buscas por mim. Eu não deveria deixar que minha querida Adellaide pensasse que eu fugiria com alguma meretriz da cidade... deveria ?" - Ele finca a pá no solo revirado e respira fundo, o suor começando a correr pela face branca e serosa, empapando as suíças loiras.
" Sabe.. quando eu fui bem.. atacado por um ... um deles eu estava voltando de Paris, com as bolsas cheias de Acônito. Eu sou.. era.. fui... um ótimo boticário. A noite era fria, como essa que começa, tudo estava calmo, até que meu cavalo começou a dar uns pinotes estranhos, como se estivesse com tanto medo que nem correr  poderia. Tentei acalmar o animal, enquanto segurava as rédeas o mais forte que podia.E do nada senti uma força enorme me puxando para trás. Antes que pudesse ver o que tinha me atacado... senti uma dor pungente no pescoço.
Eu já estava no chão.. e vi aqueles olhos vermelhos como a própria chama do inferno... vi aquela bocarra vindo de encontro, novamente, com o meu pescoço, os dentes caninos afiados como navalhas... eu esperava a morte, sabia ? Tão certo que estaria morto, quanto você teve. E só tive pensamentos para Adellaide, nem na dor eu pensei...." - Então ele recomeça o trabalho com um olhar distante e ferido.
" Mas! Um lobo do tamanho de um urso, ou talvez um urso, não.. podia jurar que era um lobo, eu ouvi ele uivar... ouvi ?- Thierry para de por terra na cova, não tem mais cova, ele terminou de refazer o que o coveiro fez e, assim, terminou o que veio fazer também- Um lobo, que seja, o que importa à você? está morto e sepultado! HAHA! Ele saltou sobre o monstro bebedor de sangue e o partiu ao meio com os dentes, em uma bocada ele separou um "homem" ao meio melhor que um ilusionista com o truque da serra.
Então ele veio à mim, isso me faz tremer até os ossos só de lembrar... cheirando o ar com as fuças encharcadas e pingando sangue. Mas algo fez  voltar, algo no ar... se eu fosse supersticioso, diria que era por causa da Wolf's Bane..."
Então ele caminha até a lápide, com o rosto retorcido em tristeza. Limpa as mãos mais-do-que-sujas nas calças mais-do-que-imundas e encara o nome nela gravado. Por alguns infindáveis instantes ele não diz nada. Só olha entorpecido e fala com uma voz quase inexistente:
" Eu enterrei um qualquer no túmulo que seria meu, o fim da vida que seria minha. Hoje morre também Thierry Gauthier. A partir de hoje sou Jacques Bonhomme. "

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Jacques Bonhomme*:  é, em Frances, o nosso “João Ninguém”

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Adorável Coffeyanista


  Não sei se é meu melhor texto, mas é, de longe, meu texto favorito. Ele foi escrito com o mesmo carinho que eu recebo a incontável tempo, da pessoa que me levou a escreve-lo e dedicá-lo. Garanto que vão identificar uma pessoa assim também:  

    Todo mundo tem uma espécie de “Doutor da Alegria não credenciado”. Alguém que consegue aliviar qualquer dor, te arrancando um sorriso a meses escondido.
    Essa pessoa não cursou nenhuma faculdade de filantropia, nem se dedica aos doentes que passam seus últimos dias gemendo, praguejando ou apenas morrendo indiferentes no fundo de uma cama de hospital. Essa pessoa tem a cara limpa, com bálsamo correndo nas veias e olhar gentil;”amorfinado”. A voz, no timbre do láudano, acalma até os ossos e ouvidos mais cansados. As conversas, são administradas em doses homeopáticas de “eu-me-importo” e “vai-ficar-tudo-bem”, em cada consulta de rotina.Ombro e colo, são os seus consultórios.
    Lithium, Valium, Prozac. Não são tão “antidepressivos” e eficientes, quanto estar envolvida pelos braços, de um Voluntário do Amplexo.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Eu, Insônia.



    Uma boa noite. Mas não de sono, mas não de sonhos. 
Eu entro sem pedir licença, seus olhos abertos e vagos são mais que um convite para mim. Então escrevo minhas linhas mal traçadas, de suas noites mal dormidas. Esse é o meu trabalho, creditado a outros.