segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Sonhos do Abismo: Demos Oneiroi



      Os últimos minutos de luz solar estendem-se caprichosos no parque. As cores do inverno projetam-se nas poucas folhas desbotadas das árvores e no rosto nacarado daqueles que aproveitam o ameno fim de tarde.  Vez ou outra uma corrente fria bagunça franjas desavisadas e faz mãos procurarem bolsos. Poucas nuvens alaranjadas se espalham no céu azul-claro, característico da estação.  Em passos lentos, um homem fotografa atentamente o lugar. Como um espectro, ele caminha pelo parque roubando pequenos momentos. Um sorriso dado em resposta a um gracejo. Uma testa franzida enquanto se lê um livro. O leve bailar dos galhos com o vento. Segundos do passado que são eternizados na simples mecânica de se apertar um botão.
Os olhos atentos do fotografo são desviados para um banco próximo. Uma menina pálida de longos cabelos negros imersa em sua leitura. Ele aponta a câmera para tal cena e tira uma sequência de fotos. Seu rosto se contorce ao olhar o resultado, porque em todas a imagens o banco aparecia vazio. Ele se prepara para tirar outra foto quando percebe que ela o observava fixamente. O homem vê esse olhar como um ótimo momento para se apresentar.

- Posso me sentar? – Diz o fotógrafo com um sorriso largo ao se aproximar


        A mulher fecha o exemplar da "Divina Comédia" sem tirar os olhos perscrutadores do rapaz. Fixamente, os dois pares de olhos dançam. E ela sabia conduzir com maestria essa valsa do abismo. Os olhos negros da moça faíscam e ele percebe que sabe o nome dela, antes de perguntar, antes de ter o ímpeto de perguntar. Melinoe.
        
"Dante"- Sussurra a voz que não está mais lá. 
           
        Ele pisca os olhos freneticamente até entender a realidade. E ela não fazia sentido algum. Aquele livro deixado no banco vazio. Dante franze o cenho, confuso, quando uma voz conhecida se torna a voz de sua própria consciência e lhe ordena. O mundo não existira mais para ele, tudo o que podia sentir era a voz dela vibrando num eco perpétuo dentro de sua mente. Augusta presença, como uma deusa entre os mortais. Nem Byron poderia descrever aquela figura de pele pálida e olhos de noite. 
         Todo o caminho para casa acaba sendo uma distorção da vontade para Dante. Ele se senta rígido no banco do ônibus e nem percebe acenos de conhecidos quando desce no ponto perto de casa. Algo além da intuição, o avisa que das sombras vem a morte, mas seus sentidos estão surdos e entorpecidos. A vida toda nunca pareceu ter existido. A mente era um pêndulo repetindo o som da voz de Melinoe. Sobe as escadas num passo mecânico, quase uma marcha para seu próprio enforcamento. As luzes do corredor apagadas, fazem seus passos pesados ecoarem mais fúnebres e os vizinhos sentirem um arrepio sem saber o porquê. Ele destranca a porta num gesto mecânico e cambaleia até o sofá onde desaba. 
       Da escuridão vem um som afunilado e repetitivo. Um par de olhos amarelo fluorescente, se aproxima e escancara a pequena boca. E no caminhar maldito das horas mortas, mais gatos surgem. Quatro gatos brancos. Com o pelo em riste e sibilando em comuna com velhos pesadelos e criaturas mais antigas que o próprio medo. Mais um miado longo e conjunto. As sombras se engrandecem e apenas os glóbulos reluzem. Outro miado e as sombras se esparsam. Cheiro metálico e pastoso. O pelo antes branco dos animais, estão agora, tingidos de um sangue escuro e seco. O som de suas vozes é um crescendo de pura dor.
      Quatro da manhã e ele desperta em um espasmódico susto no escuro. Sua gata cinza-fosco, brinca com o colar étnico em seu pescoço e mia baixinho. O corpo de Dante estava em uma posição estranha no sofá desigualmente confortável para seu tamanho. Nenhuma recordação de que havia adormecido ou que havia chego em casa, a última lembrança na mente anuviada e confusa é ter estado no parque. Na penumbra fracamente iluminada pela luz da rua que vem da sacada da sala, ele pode distinguir a forma compacta em cima da mesa de vidro que ocupa boa parte do cômodo. Ligeiramente, ele anda em passos ansiosos até a mesa e liga a câmera em suas mãos tremulas. No display da máquina, aparece a mesma foto que se lembrava de ter tirado. O banco vazio.
      Enquanto ele franzia a testa e tinha certeza que havia uma mulher neste banco, ouve uivos. Não um, não dois. Mas de todos os cães da rua. E eles parecem ir se aproximando do apartamento.
      A cadela de porte pequeno da residencia uiva num som fino e anormal, fazendo Dante sobressaltar. No mesmo momento, ouve-se batidas repetitivas na porta da frente, fazendo seu estômago dar nós. Então, sem sobreaviso, elas cessão e o único barulho no apartamento deserto é o coração de Dante, dando punhaladas em seu peito. Suas pernas tremem, como se não aguentassem o peso do próprio corpo e do pavor.
      O som seguinte lhe traz uma calma apática.

-Dante! Abra a porta! É Melinoe quem ordena! - Ele caminha em solavancos bobos e deixa-a entrar, sem nem mesmo a questionar ou a si questionar de como a mulher conseguiu entrar pela porta do prédio e não fazer barulho algum ao subir o curto lance de escadas. 



      Em um movimento tão rápido quanto um raio é perceptível aos olhos humanos, ela enlaça seus lábios rubros nos trêmulos dele. A língua e o desejo avançam sem cabresto, fazendo o casal girar constantemente o rosto. Ele a envolve em um abraço pela cintura, trazendo seu corpo estranhamente frio mais perto. Com um leve movimento a comprime contra o apoio do sofá, enquanto Melinoe  trança os largos quadris de Dante com suas coxas, fazendo assim, desnuada-las do longo vestido preto.
      As mãos de Dante logo percorrem a carne alva e rija como o granito. Melinoe solta um arfar do fundo da garganta, quase um urro, quando a ponta dos dedos se aproximam do meio das coxas. Ela agarra o pescoço de Dante com uma das mãos, enquanto a outra apoia-se no móvel. Passa a língua libidinosa na jugular do rapaz com uma calma calculada, desacelerando a cena. A artéria pulsa e a Besta protesta, fazendo os olhos de Melinoe arder de sede.


-Hmmmm... seu cheiro... - fala enquanto o olha fixa e profundamente, com o sorriso em carranca. Dante tem aquela sensação estranha novamente, como a presa tem, milissegundos antes de ser abatida.
       

       A gata cinzenta,  senta-se imóvel no umbral do pequeno corredor. Os olhos amarelos do animal observam cada passo da luxuriosa cena, seus ouvidos captam cada modulação de insânia que escapa daquelas bocas. O bicho se aproxima do sofá e a cada passo, transformações sutis moldam o seu esqueleto. Primeiro o tom do pelo muda para um preto lustroso, o globo ocular vai se tornando mais humano. Numa erupção de sombras o corpo felino agiganta, contorcendo-se em ângulos obtusos. A criatura se torna bípede em estalos secos e ecos. As sombras do cômodo dançam em volta do corpo esquálido e níveo, formando um manto vivo e cobrindo a criatura que nunca foi humana, mesmo tendo existido como uma.

                Melinoe sorri no meio de um dos infinitos beijos, fazendo Dante reduzir o movimento pélvico e olhar nos olhos obsidianos da mulher. Ele pergunta algo frequente, esperando uma resposta comum, de uma trepada casual:


- Tá bom, né? - A frase curta, falada num tom morno e rouco, desperta uma risada histérica em Melinoe. Dante franze a testa de ébano polida pelo suor.

- Ri por quê?- Um arrepio percorre o corpo de Dante, quando a mulher traz a boca ao ouvido dele.

- Porque vai morrer. 



      Em um átimo, o manto da criatura que os observava se refaz em mil tentáculos de sombra. Eles deslizam pelo chão, quase líquidos, até encontrar a carne de Dante. Antes que ele pudesse inflar os pulões em um grito de horror, os tentáculos negros entram pelas suas narinas, frios úmidos, como o o toque da morte.
      Dante abre os olhos no vazio do abismo. E sente o nada. Vozes afuniladas e distantes, entoam um ritual em uma língua velha e estranha. O tempo era o mesmo de quando se sonha antes de despertar, infinitamente impreciso. O abismo agora sussurrava seu nome. Quando se tem um pesadelo mergulhado no éter e no érebo, o tempo se torna imprecisamente infinito.