Fazia tanto frio naquela tarde cinza, que até o vento lamuriava com
aspereza nos galhos das velhas árvores. Retorcidas por outros invernos piores,
só concordavam, cansadas, com o lamento. O vento podia choramingar e ulular o
quão alto quisesse: castanheiros; pinheiros; amendoeiras; faias; nogueiras;
abetos;sobreiros;carvalhos, nenhum se importava realmente com as vozes do
vento.
Toda a natureza estava em um silêncio mais que inanimado, ouvindo o
choro abafado do menino nas saias de sua mãe. Ela não chorava. Mantinha a face
dura com os olhos vidrados na lápide em que dizia "Thierry Gauthier -
Amado pai, honrado marido", enquanto afagava mecanicamente os cabelos do
pequeno. Ele se demorou na última prece, mas o frio foi mais teimoso, e já
ardia as pequeninas mãos entrelaçadas. Ela só pediu, não, implorou, ao Criador
que encontrassem a besta selvagem que tirou seu esposo e pai do seu filho do
âmago do lar.
A mãe secou as lágrimas do rosto do garoto. E eles se foram, como dois
corvos desnorteados.
Ouve-se arrastar de folhas. Ouve-se arrastar de passos. Um homem
maltrapilho alto e magro (tão alto e tão magro quanto os pés possam sustentar),
saí de trás das mesmas velhas árvores condescendentes arrastando uma pá
(arrastando tanto o quanto um homem tão alto e tão magro, poderia arrastar uma
pá). Ele anda até a sepultura, indiferente ao lamentoso vento e indiferente aos
que ali antes prantearam, ele cava. Ele cava com gana, espalhando terra a esmo
e sujando ainda mais os trapos que vestia. Ele cava como sua vida dependesse
disso. Não, ele cava como se algo mais importante que a vida dependesse disso.
A pá encontra o caixão toscamente feito em um baque surdo. O homem se
ajoelha e retira com as mãos a terra que falta, em suspiros longos e exaustos.
Ele parte a tampa e com os mesmos suspiros longos e exaustos ele enfia a mão
dentro do bolso colete do recém-enterrado. Pega, com as mãos trêmulas e imundas
uma pequena fotografia : Uma mulher de cabelos castanho-claros e olhos ternos,
também castanho-claros, segurando um bebê de poucos dias de vida. Ele mete o
retrato sabe-se-lá-em-que-bolso e sai da cova.
Antes de refazer o trabalho do coveiro, ele para e olha para o homem
dentro do buraco. Ou o que sobrou dele. Ou melhor, o que sobrou das sobras do
pescoço para baixo. O cadáver não tinha mais o que poderia ser chamado de
rosto, só sabia que "era um" porque AINDA dava para ser localizado
entre as orelhas.
Era tudo um amontoado retalhado de carne com grandes crostas negras de
sangue seco. Tinha partes do "rosto" que os ossos estavam expostos e
desgastados até o tutano... Que descanse em paz!
A terra começa a ser devolvida ao caixão destampado. Thierry Gauthier
não estava naquele túmulo, porque Thierry Gauthier e a "Besta Selvagem de
Vichy"- Como ficou conhecida- são a mesma coisa, a mesma que agora joga as
pás de terra.
E o homem
vivo começa um meio diálogo, meio monólogo com o homem morto:
" Eu tive tanta sorte em encontrar um qualquer vagando na estrada aquela noite, eu tinha
tanta.. sede. E.. logo iam parar as buscas por mim. Eu não deveria deixar que
minha querida Adellaide pensasse que eu fugiria com alguma meretriz da
cidade... deveria ?" - Ele finca a pá no solo revirado e respira fundo, o
suor começando a correr pela face branca e serosa, empapando as suíças loiras.
" Sabe.. quando eu fui bem.. atacado por um ... um deles eu estava
voltando de Paris, com as bolsas cheias de Acônito. Eu sou.. era.. fui... um
ótimo boticário. A noite era fria, como essa que começa, tudo estava calmo, até
que meu cavalo começou a dar uns pinotes estranhos, como se estivesse com tanto
medo que nem correr poderia. Tentei
acalmar o animal, enquanto segurava as rédeas o mais forte que podia.E do nada
senti uma força enorme me puxando para trás. Antes que pudesse ver o que tinha
me atacado... senti uma dor pungente no pescoço.
Eu já estava no chão.. e vi aqueles olhos vermelhos como a própria
chama do inferno... vi aquela bocarra vindo de encontro, novamente, com o meu
pescoço, os dentes caninos afiados como navalhas... eu esperava a morte, sabia
? Tão certo que estaria morto, quanto você teve. E só tive pensamentos para
Adellaide, nem na dor eu pensei...." - Então ele recomeça o trabalho com
um olhar distante e ferido.
" Mas! Um lobo do tamanho de um urso, ou talvez um urso, não..
podia jurar que era um lobo, eu ouvi ele uivar... ouvi ?- Thierry para de por
terra na cova, não tem mais cova, ele terminou de refazer o que o coveiro fez
e, assim, terminou o que veio fazer também- Um lobo, que seja, o que importa à
você? está morto e sepultado! HAHA! Ele saltou sobre o monstro bebedor de
sangue e o partiu ao meio com os dentes, em uma bocada ele separou um
"homem" ao meio melhor que um ilusionista com o truque da serra.
Então ele
veio à mim, isso me faz tremer até os ossos só de lembrar... cheirando o ar com
as fuças encharcadas e pingando sangue. Mas algo fez voltar, algo no ar... se eu fosse
supersticioso, diria que era por causa da Wolf's Bane..."
Então ele caminha até a lápide, com o rosto retorcido em tristeza.
Limpa as mãos mais-do-que-sujas nas calças mais-do-que-imundas e encara o nome
nela gravado. Por alguns infindáveis instantes ele não diz nada. Só olha
entorpecido e fala com uma voz quase inexistente:
" Eu enterrei um qualquer no túmulo que seria meu, o fim da vida
que seria minha. Hoje morre também Thierry Gauthier. A partir de hoje sou
Jacques Bonhomme. "
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Jacques
Bonhomme*: é, em Frances, o nosso “João
Ninguém”
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