segunda-feira, 2 de dezembro de 2013
Eternidade de um coração roubado
A menina corre desesperada pela mata virgem. Os galhos são insensíveis chicotes na face negra da garota, o sangue escorre em grossos filetes onde a vegetação corta, como que querendo expulsar a visitante indesejável. Ela puxa o ar noturno com os pulmões exaustos enquanto as pernas vagueiam e tropeçam pelo breu de arvores densas. Ela cai, as mãos impedem que o seu rosto chegue ao chão enlameado pelas chuvas insistentes daquela semana, mas não impedem que tingam de barro a bermuda jeans e a blusa azul básica. Ela se levanta em um pulo, as palmas da mão estão ardendo, a pele escura brilha de suor sangue e lágrimas. Toma o ar, o mais profundo que pode, e recomeça a correr, porque o inferno vem em seu encalço.
Ela chega ao asfalto e não sabe mais onde está. A rua deserta com postes sem luz, faz suas entranhas se contorcerem em ângulos dolorosos. Aquele frio na espinha irracional se apodera do corpo molenga. Ela desaba de joelhos. O fim logo vem e ela reza, trêmula.
Grandes olhos cor de âmbar vão surgindo na escuridão verde.
"Estou aqui. Evocou-me. Fizeste seus desejos por meio de meus termos... agora vim revindica-los" - O ar todo se esfria com a voz não-humana da criatura. O som grave faz tudo se silenciar. As árvores não ousam se mexer e o coração dela desejaria estar imóvel também.
"Mas valeu o preço?"-Mãos longas e finas, como um graveto seco tocam o ombro nu da garota que empalidece instantaneamente. O toque lhe congela os movimentos, ela nada fala, nada faz. O coração acelera, machucando o peito. E a criatura prossegue.
"Vieste até meu bosque, proferiste as palavras, finalizou o contrato com teu primeiro sangue. Como parte dele, também preciso lhe perguntar se entregará de bom grado..."
Antes de poder finalizar, a coisa se coloca a frente da garota. Ela agora pode ver seu perseguidor. A pele branca e manchada como um tronco de árvore velha, os cabelos cinzentos e longos, magro e de características quase humanas, se não fosse pelos olhos âmbar opacos;imóveis e pela falta de nariz e boca. Os olhos se acendem e aquilo termina a frase:
"... entregará de bom grado seu coração?"- sua frio, faz-se um nó na garganta, os olhos giram na órbita e ela devaneia.
A cena se faz viva, como o despertar de um longo sono. A luz da fresta da porta de madeira, deixa o quarto semi iluminado pelos raios de sol invernal. Dois pares de olhos trocam as confidências daquele momento. A cama tem cheiro dos dois. Ela se entrelaça no corpo do garoto, que lhe dá beijos curtos no pescoço e ombros enquanto ela se aproxima. Risos baixos. Clima frio. Ela descansa a cabeça e todos os medos no peito dele. Duas pessoas no limar de ser estranho para o outro, sem as frustrações corriqueiras, só as descobertas que fazem as borboletas inválidas do estômago terem saudade de alçar voo. Um par de mãos se entrelaçam:
"Gostaria de poder te dar um presente - diz com voz tímida a garota"
"E porque não pode?- indaga o menino com a testa franzida
"O que eu quero te dar já não é meu..."-ele continua com a mesma expressão e ela prossegue.
"Gostaria de te dar meu coração, mas já o tem."
Ela se afunda em seus braços, e a cena vai se apagando, como a última chama de uma vela antes se consumir.
Os olhos âmbar continuam a encarando, mas agora eles parecem úmidos. A pele do rosto de tal criatura tem longos caminhos de condensação. Se não fosse o sereno da madrugada, que molhava também a grama da beira da estrada, ela poderia supor que tal coisa tinha chorado. O corpo não tremia mais de medo e nem de frio. Ela respira profundamente e deixa aquela pequena nuvem de vapor, esvair lentamente de sua boca carmim. Prossegue com a voz monótona:
"Sim, repito agora as palavras do meu juramento:
Pelos deuses antigos que um dia pisaram nesse chão.
Que o amor seja recíproco.
Ou entrego a vós meu coração."
Ela se ergue e a criatura se aproxima com os dedos longos do peito da menina. Crava-os na carne, o sangue esguicha tingindo a pálida aberração. Ela não exprime som algum, enquanto tem seu peito dilacerado. O único som presente é o estalar dos seus ossos, quando tem a caixa torácica partida. Um som seco e curto, um estalido e acabou. As falanges pálidas parecem pincéis encharcados de tinta fresca quando saem de dentro do corpo inerte e ainda de pé da garota. Ele tem o coração pulsante fechado nas mãos secas, como uma gaiola de vime.
"Tudo que vocês Humanos dizem ser eterno, morre prematuramente. Só a morte é infindável."- diz tal coisa, olhando para os olhos frios e sem vida da menina antes de se retirar e desaparecer no bosque, como se nunca tivesse existido.
O corpo da garota começa a se transmutar lentamente, iluminado pela rósea aurora que surge longe no horizonte infinito. A pele escura se torna amadeirada e cheia de vincos. Os braços se erguem pateticamente, como se ela fosse uma marionete. Os dedos se alongam e florescem. Galhos e mais galhos vão crescendo em uma velocidade acelerada. O corpo se expande, se tornando um tronco roliço e raízes fazem remexer a terra.
Perante o vento cortante da madrugada,sibilando em um únco tom, a árvore nova e as demais,parecem lamentar dolorosamente.
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