sexta-feira, 10 de maio de 2013

Sally-Ann




   O pequeno gato preto me seguiu com os olhos, olhos atentos, olhos verdes, enquanto eu andava pelas ruas desertas de uma cidade escura, fria e abandonada. Minha mão segura, quase inerte, a garrafa de uísque já amornada até a temperatura do meu corpo, que luta incessantemente com a mordente brisa que insiste em roubar aos poucos o tímido calor que escapa com meu hálito. O pequeno gato preto de atentos olhos verdes mia, pula, derrubando algumas latas de lixo. O som, alto, rasgante contra o silêncio opressor na noite, me faz saltar.Fecho melhor meu casaco puído, aperto meu cachecol e bebo um gole do âmbar ardente que tem sido meu único amigo nos últimos dias.
   Enquanto timidamente lembro da minha vida, histórico esse de fracassos sobre fracassos com pequenos sucessos que teimam em me dar esperança de que talvez, talvez, tudo melhore um dia desses.
Ando para o norte da cidade, em direção as pontes antigas que eu costumava visitar com ela.
Não pretendo me matar, sobrevivi a dias piores que esse. Só quero relembrar.
   Meu pequeno e fedido apartamento, com minhas companheiras de quarto insetóides, cascudas e nojentas, fica a oeste, mas quero me livrar do barulho incessante do subúrbio subumano, das pias manchadas com coisas estranhas que devem, com certeza mais que absoluta, ter origem xenomórfica, da pizza estragada no canto da cozinha e das baratas saindo pelo ralo do meu chuveiro (que só funciona na posição verão, que me delega banhos com água tão fria que deve ser trazida do ártico só para o meu prédio).
   Quero fugir do meu inquilino fedido cobrando o aluguel do mês, meu chefe gritando comigo (e me demitindo de novo), minha ex namorada ligando pra saber quando eu vou devolver alguma coisa menial e ridícula que só esqueci de devolver na semana passada pra piorar essa semana atual.
   Quero fugir do fato que eu tenho quase 30 anos de idade, não tenho nenhuma prospectiva saudável de emprego, sofro levemente de alcoolismo (fortemente de alcoolismo), tenho medo de mulheres, não consigo pronunciar três palavras sem gaguejar e não tenho ninguém pra pedir ajuda.
   Tenho uma barba mal feita (não tive dinheiro pra comprar o aparelho descartável essa semana), uma pequena barriga, luvas de lã (furadas) e 3 ou 4 camisetas diferentes.
Me formei como programador, mas nunca consegui emprego como programador.
   Fui entregador de pizza, ajudante de contador, caixa de mercado, embalador de produtos no mercado, faxineiro no mercado, e caixa na loja de comida chinesa.
Parei de ser entregador quando perdi a moto numa aposta, fui demitido da agência de contabilidade por beber demais, declinei rapidamente de posição no mercadinho do bairro até atingir o fundo do poço por que não conseguia me livrar das dívidas que adquiri por causa da minha ex-namorada, e não satisfeito com isso, tirei o calçamento do poço e virei caixa de uma loja de comida chinesa com 3 metros quadrados de espaço e um cozinheiro que espirrava no rolinho primavera dos clientes.
    Enquanto ando sem sentido até as pontes no lado norte da cidade, eu me pergunto por que minha vida é tão ruim.
Claro, podia ser pior, eu podia estar passando fome. Eu podia nem ter o restaurante chinês de 3 metros quadrados.
   As pontes me lembram do único momento feliz da minha vida, dos dias em que eu era feliz de verdade.
   Quando conheci Sally-Ann, eu estava nessa mesma ponte pra qual eu estou indo, a fíbula quebrada e saltada, fragmentada, do antigo sistema de ferrovias estadual. Naquela época ela já era marrom e pichada e enferrujada, quase caindo. Eu estava sentado no beiral da murada, com 20 anos de idade, pensando em quanta falta eu faria se eu caísse no mar lá em baixo. Meus cálculos resultaram em "pouca falta", como vocês podem esperar. E quando eu tomei coragem de terminar tudo, de pular, eu ouvi uma voz falar. Alguém falando comigo:

"É alto daqui, não é? Seria horrível cair."- Ela era pequena, morena, sardenta, e era absoluta e terrivelmente linda.

"Meu nome é Sally-Ann, qual é o seu? Achei que só eu vinha aqui"- Eu tentei falar. Eu juro. Mas eu nunca passei de algo que podia ter soado tanto como meu nome tanto como "kabob com queijo". Maldita gagueira. Ela riu, e estendeu a mão pra mim. 

   Quase 10 anos depois disso, e eu lembro da risada dela.
   Sally-Ann foi meu mundo, meu tudo. Por ela, eu fiz tudo aquilo que nunca teria feito sozinho.
   Sally-Ann esteve do meu lado, todos os dias da minha vida.
   E ele esteve do lado dela.
   Eu sempre amei Sally-Ann, porém, eu nunca falei nada. Como eu poderia? Quem iria me amar? Eu, um pobre gago sem esperanças para o futuro? Então, eu a deixei partir.
   Faziam quase 3 anos que eu não ouvia notícias de Sally-Ann, e faziam 3 anos que eu tinha ido parar no fundo do poço. E parado ali, de novo, quase 10 anos depois disso, sentado na murada daquela velha fíbula quebrada e estilhaçada do que parecia a sátira de uma ferrovia que descansara ali a centenas de anos atrás, eu pensei que podia ouvir a risada de Sally-Ann de novo. Oh, céus, como eu queria que você estivesse do meu lado, Sally. Eu queria poder falar pra você, falar, falar tudo que eu não falei nesses 10 anos, Sally-Ann. Eu queria poder dar a mão pra você, ouvir sua risada, ouvir você falar que tudo ia ficar bem. Sally, eu sinto sua falta. Nada vai ficar bem. Nada nunca vai ficar bem comigo, não sem você, Sally-Ann.
   O pequeno gato preto me seguiu com os olhos, olhos verdes e atentos, enquanto eu caia pelo ar gelado da costa de uma cidade escura, deserta, fria e abandonada. Minha mão segurava, inerte, a fria mão da mulher que eu amei, enquanto a maré gelada insistia em roubar de mim o pouco ar que meus pulmões lutavam para guardar. O pequeno gato preto mia, e segue andando. Nunca fez diferença para ninguém.

Nunca faria.

(Texto de um amigo)










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