O pequeno gato preto me seguiu com os olhos, olhos atentos,
olhos verdes, enquanto eu andava pelas ruas desertas de uma cidade escura, fria
e abandonada. Minha mão segura, quase inerte, a garrafa de uísque já
amornada até a temperatura do meu corpo, que luta incessantemente com a
mordente brisa que insiste em roubar aos poucos o tímido calor que escapa com
meu hálito. O pequeno gato preto de atentos olhos verdes mia, pula,
derrubando algumas latas de lixo. O som, alto, rasgante contra o silêncio
opressor na noite, me faz saltar.Fecho melhor meu casaco puído, aperto meu cachecol e bebo um
gole do âmbar ardente que tem sido meu único amigo nos últimos dias.
Enquanto timidamente lembro da minha vida, histórico esse de
fracassos sobre fracassos com pequenos sucessos que teimam em me dar esperança
de que talvez, talvez, tudo melhore um dia desses.
Ando para o norte da cidade, em direção as pontes antigas
que eu costumava visitar com ela.
Não pretendo me matar, sobrevivi a dias piores que esse. Só
quero relembrar.
Meu pequeno e fedido apartamento, com minhas companheiras de
quarto insetóides, cascudas e nojentas, fica a oeste, mas quero me livrar do
barulho incessante do subúrbio subumano, das pias manchadas com coisas
estranhas que devem, com certeza mais que absoluta, ter origem xenomórfica, da
pizza estragada no canto da cozinha e das baratas saindo pelo ralo do meu
chuveiro (que só funciona na posição verão, que me delega banhos com água tão
fria que deve ser trazida do ártico só para o meu prédio).
Quero fugir do meu inquilino fedido cobrando o aluguel do
mês, meu chefe gritando comigo (e me demitindo de novo), minha ex namorada
ligando pra saber quando eu vou devolver alguma coisa menial e ridícula que só
esqueci de devolver na semana passada pra piorar essa semana atual.
Quero fugir do fato que eu tenho quase 30 anos de idade, não
tenho nenhuma prospectiva saudável de emprego, sofro levemente de alcoolismo
(fortemente de alcoolismo), tenho medo de mulheres, não consigo pronunciar três
palavras sem gaguejar e não tenho ninguém pra pedir ajuda.
Tenho uma barba mal feita (não tive dinheiro pra comprar o
aparelho descartável essa semana), uma pequena barriga, luvas de lã (furadas) e
3 ou 4 camisetas diferentes.
Me formei como programador, mas nunca consegui emprego como
programador.
Fui entregador de pizza, ajudante de contador, caixa de
mercado, embalador de produtos no mercado, faxineiro no mercado, e caixa na
loja de comida chinesa.
Parei de ser entregador quando perdi a moto numa aposta, fui
demitido da agência de contabilidade por beber demais, declinei rapidamente de
posição no mercadinho do bairro até atingir o fundo do poço por que não
conseguia me livrar das dívidas que adquiri por causa da minha ex-namorada, e
não satisfeito com isso, tirei o calçamento do poço e virei caixa de uma loja
de comida chinesa com 3 metros quadrados de espaço e um cozinheiro que
espirrava no rolinho primavera dos clientes.
Enquanto ando sem
sentido até as pontes no lado norte da cidade, eu me pergunto por que minha
vida é tão ruim.
Claro, podia ser pior, eu podia estar passando fome. Eu
podia nem ter o restaurante chinês de 3 metros quadrados.
As pontes me lembram do único momento feliz da minha vida,
dos dias em que eu era feliz de verdade.
Quando conheci Sally-Ann, eu estava nessa mesma ponte pra
qual eu estou indo, a fíbula quebrada e saltada, fragmentada, do antigo sistema
de ferrovias estadual. Naquela época ela já era marrom e pichada e enferrujada,
quase caindo. Eu estava sentado no beiral da murada, com 20 anos de idade,
pensando em quanta falta eu faria se eu caísse no mar lá em baixo. Meus cálculos resultaram em "pouca falta", como
vocês podem esperar. E quando eu tomei coragem de terminar tudo, de pular, eu
ouvi uma voz falar. Alguém falando comigo:
"É alto daqui, não é? Seria horrível cair."- Ela era pequena, morena, sardenta, e era absoluta e terrivelmente linda.
"Meu nome é Sally-Ann, qual é o seu? Achei que só eu
vinha aqui"- Eu tentei falar. Eu juro. Mas eu nunca passei de algo que
podia ter soado tanto como meu nome tanto como "kabob com queijo". Maldita gagueira. Ela riu, e estendeu a mão pra mim.
Quase 10 anos depois disso, e eu lembro da risada dela.
Sally-Ann foi meu mundo, meu tudo. Por ela, eu fiz tudo
aquilo que nunca teria feito sozinho.
Sally-Ann esteve do meu lado, todos os dias da minha vida.
E ele esteve do lado dela.
Eu sempre amei Sally-Ann, porém, eu nunca falei nada. Como
eu poderia? Quem iria me amar? Eu, um pobre gago sem esperanças para o futuro? Então, eu a deixei partir.
Faziam quase 3 anos que eu não ouvia notícias de Sally-Ann,
e faziam 3 anos que eu tinha ido parar no fundo do poço. E parado ali, de novo, quase 10 anos depois disso, sentado na
murada daquela velha fíbula quebrada e estilhaçada do que parecia a sátira de
uma ferrovia que descansara ali a centenas de anos atrás, eu pensei que podia
ouvir a risada de Sally-Ann de novo. Oh, céus, como eu queria que você estivesse do meu lado, Sally. Eu queria poder falar pra você, falar, falar tudo que eu não
falei nesses 10 anos, Sally-Ann. Eu queria poder dar a mão pra você, ouvir sua risada, ouvir
você falar que tudo ia ficar bem. Sally, eu sinto sua falta. Nada vai ficar bem. Nada nunca vai ficar bem comigo, não sem você, Sally-Ann.
O pequeno gato preto me seguiu com os olhos, olhos verdes e
atentos, enquanto eu caia pelo ar gelado da costa de uma cidade escura,
deserta, fria e abandonada. Minha mão segurava, inerte, a fria mão da mulher que eu
amei, enquanto a maré gelada insistia em roubar de mim o pouco ar que meus
pulmões lutavam para guardar. O pequeno gato preto mia, e segue andando. Nunca fez diferença para ninguém.
Nunca faria.
(Texto de um amigo)
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