quarta-feira, 8 de maio de 2013

A chama de uma vela




   A pele dela se tornava tão fria e áspera, quanto o chão que ela estava estirada. Lúcia conseguia ver a aurora da primavera  por seus olhos semi-serrados. Só um toco de vela tremeluzia no quarto. A mulher tenta focalizar o relógio, mas seus olhos se embaçam ainda mais. A luz daquele dia já começava a se esgueirar pelas frestas da persiana e Lúcia via o ar dançar nos raios de luz, em caleidoscópios empoeirados. Ela inclina a cabeça um pouco para frente, pra tentar adivinhar a posição dos ponteiros. Quando ela consegue reunir forças para tentar sentar, a pressão cai e lhe faz tombar no chão como uma boneca de pano. Então a letargia vai dar uma volta em suas memórias.

  O homem levanta totalmente trôpego do sofá e esparrama as folhas de desenho pelo chão. As manchas se acumulavam pela sala: Vinho no tapete (e alguns cacos de vidro) e pequenas partes chamuscadas pelas brasas que pulavam da lareira. No sofá, digitais desde carvão até tinta à óleo vermelha. Pela quantidade e poucos "tons" dessas manchas, poderíamos afirmar que ele fazia isso com uma frequência quase compulsiva. 
  Quando termina de reorganizar as folhas pela terceira vez, senta-se no sofá e olha para sua criação. O desenho se torna mais belo, quase vivo, pelas luzes coloridas das dezenas de velas espalhadas pelo apartamento.Já faziam algumas semanas que cortaram a luz, e essa semana, seria a água. Ele suja todo o rosto de lápis de desenho, tentando secar as lágrimas que corriam grossas e o emudeciam.

"Lúcia..."- é só o que escapa entre os soluços, antes que dele desmaiar no sofá. 

  O calor da sala o faz acordar assustado. Mas o crepitar não vem de nenhuma fonte de luz da sala. Vem de uma mulher, vestida só com um meio sorriso, em pé na frente da lareira. Ela era a personificação do desenho do nosso boêmio. Ela era Lúcia. 
  Ele faz promessas mentais a si mesmo enquanto a mulher se aproxima dele: Que não vai mais beber. Que vai arranjar um emprego e uma mulher de verdade. Lúcia nunca existiu na vida dele e de mais ninguém. Ela só era um esboço de amor platônico.
  Quando a pele dos dois se encontram, ele se afasta em um átimo. Lúcia tinha a textura e temperatura de uma vela recém acesa. Ele só a olha, cada parte do corpo da moça, foi esculpido em sua mente: Os cabelos loiros, que ondulavam com o movimento de uma chama. Os olhos âmbar com sombras inexplicáveis. A pele alva como algodão. O corpo como estátuas de velhas deusas: seios médios e redondos, coxas fartas e roliças. 
  Lúcia se aproxima novamente, colocando suas mãos ao redor do pescoço do seu criador. O âmbar se acende. Ela o beija com os lábios desejosos, puxando o corpo dele cada vez mais forte ao encontro do dela. Ele dessa vez não recua.
 Pela manhã, ele não se lembra como chegou em sua cama e nem de ter se despido antes de deitar nela. Estava prestes a reforçar sua promessas da madrugada passada, quando vê sua obra viva acendendo uma vela na estante improvisada. Lúcia era a melhor coisa que tinha acontecido a esse artista falido. Decidiu viver esse amor, sendo real ou não. 

"Enquanto essa vela queimar, seu amor permanecerá aceso dentro de  seu peito"- Ela disse com a voz doce, mas parecia ser mais uma advertência que uma declaração apaixonada. 


  
  A sombra da persiana já alcançava o corpo quase inerte no chão do quarto, quando ele chega. Ele caminha, andarilhando, até o quarto. Além do cheiro de bebida, ele tem impregnado um perfume barato. O cheiro logo se espalha pelo aposento, levado pela lufada de vento quando abre a porta. 

"Lúcia.." é o que mais uma vez sai de sua voz embargada. 

A vela sopra uma fina fumaça e o homem caí de joelhos ao lado de uma grande mancha de cera.

-------------------------------#####-----------------------------



"Just don't forget a candle's fire. It's just a flame"

Nenhum comentário:

Postar um comentário