Uma voz
afunilada e quase impessoal, ecoa na mente de uma mulher deitada no piso de um banheiro azulejado.
"Alguém já te disse que os sorrisos são suicidas? - A mulher, quebrando o
transe imoto, balança fracamente a cabeça em negativa - Então saiba, quanto
mais largo um sorriso for, mais fundo será o abismo de apatia, sofrimento ou
mágoa que ele se jogará. A maioria morre do mesmo modo que surge: num violento
silêncio. Mas tem aqueles que despencam de uma felicidade tão grande, do própio
paraíso, que nem conseguimos prever o momento que ele atingirá o solo. Ao invés
disso, sentimos os cantos dos lábios tremerem, depois o queixo, então os olhos
se tornam inúteis barragens contra as grossas lágrimas. Os sorrisos são
suicidas, Teodora."
O corpo quase inerte se encolhe no
canto do box azulejado. Suas pernas muito magras tremem quando as gotas quentes
do chuveiro lhe tocam a carne torpe e alva. Ela passa as mãos arroxeadas pelos
longos cabelos emaranhados, tirando-os do rosto. Cruza os braços nas costelas
aparentes e aperta os seios contra a pele descolorida do tórax. O braço
esquerdo cai com um leve estampido sobre a coxa, antes de escorregar debilmente
ao piso. Um filete de sangue corre intermitentemente da pustema localizada na
junta do braço com o antebraço. A mulher observa o líquido carmim se diluindo
na derme molhada. Os olhos se prendem nas dezenas de córregos, pelos quais sua
vida escorre lentamente. O sangue serpenteia no azulejo branco até o delta no
ralo. Ela respira com o mesmo chiado no peito que a acompanha a dois meses.
Escora o ombro direito na parede e consegue se levantar com tremendo esforço. O
sangue vaza mais forte nessa posição, acumulando-se nas pontas dos dedos, uma
torta comparação do orvalho em uma árvore seca.
Fecha a torneira com uma leve
tontura, que a segue pelo banheiro. Pega uma regata no chão, já manchada de
pingos escuros de sangue seco, amarra em volta da ferida. Seca-se com desleixo,
veste um camisão escolhido a esmo do monte de roupa suja, atrás da porta.
Mete a mão em todos os bolsos de todas as calças do mesmo monte e encontra um
pacotinho de plástico que, para seu descontentamento, estava totalmente vazio.
Procura algum cigarro embebido na substância ou em algum dos copos em cima da
pia, ainda com o forte cheiro do éter. Nada. Maços amassados na lixeira e copos
vazios. A poeira do som das asas dos
anjos, o argento pó sidéreo, havia acabado.A pele vai tomando uma coloração
leprosa. O coração bate com raiva, como se xingasse por desperdiçar os 26 anos
de trabalho árduo do órgão.Suor e tremores. Boca seca e enjoos. Esperava alguém
e ela estava atrasada. Podia sentir a carne enrijecimento, não demoraria para
ter outra convulsão. O ar se torna escasso e ela se afoga em si mesma. Apoia-se
na parede, não aguenta seu peso e o peso da própia vida se esvaindo.Tenta
tragar o oxigênio, mas só respira dor pura, inflando e fazendo arder os
pulmões. O corpo cai exausto e fica na posição disforme de uma boneca
abandonada. Braços tortos e pernas cruzadas em posições estranhas.
Os olhos embaçam mais um pouco e
giram em todas as direções antes de um som quase inaudível, como se pudesse
ouvir o ar sendo deslocado, fazem Teodora estacar. Uma voz dolorosamente
familiar a apunha-la. Ouve num pânico comatoso sobre sorrisos que morreram sem
cortejo, retém uma lembrança na memória, da queda do seu sorriso mais sincero,
expulso do Éden de um abraço.
Tudo ocorre tão rápido quanto os
últimos segundos de um sonho, que estendem-se até os limites do próprio tempo
para quem o sonha. Uma manhã de verão. Uma despedida. Gotas de suor brotam da
testa retorcida do corpo vacilante de Teodora. Só deuses ausentes e a propia
mulher poderiam ver tal cena. Teodora nova, correndo para um abraço mal
recebido e um beijo negado de um menino com o sorriso mais ferido que uma
alguém esboçou. Segue-se uma discussão feroz, qual um encontro de alcateias na
disputa de uma carcaça. Um pedido refutado com tanto pesar, que o coração dos
dois se atrofiam para sempre. Então o suicídio do sorriso e a mulher desmorona
em soluços. Volta para o banheiro semi-consciente, encara o mesmo homem, a
olhando com um meio sorriso terno e trêmulo.
- Achei que não viria.. - diz Teodora com a voz embargada enquanto o sujeito se
aproxima. Rouba-lhe um beijo urgente. As línguas fugazes se entrelaçam e deixam
ser entrelaçadas. A mulher afasta o rosto poucos centímetros e diz quase
suplicante - Faça hoje parecer real.